terça-feira, 4 de setembro de 2012

Quem ri

Já passava de meia-noite quando as filmagens começaram.

“Em seus lugares....Atenção....!” Ao lado da câmera o diretor se comunicava por gestos...três dedos em riste...dois dedos...somente o indicador....o polegar levantado. Começava a gravação.

“Boa noite! Iéié! Salci-fufu!!” Pulinhos e gracinhas e gestos idiotas e vozinhas irritantes e segue o show.

“O que você faz meu filho?”

“Eu mordo o cotovelo.”

“Você faaaazzzzz....OOOOOO QUEEEEEE?”

“Eu mordo o cotovelo.”

“CORTA! Foi ótimo garoto!”

Sem dizer palavra, ele vira a cara e acende o cigarro. Ainda me encontro parado ao seu lado, sem saber muito bem o que fazer, o diretor, câmeras e contra-regras correndo de um lado para outro. Olho embasbacado, sem saber o que fazer, o que dizer. Ele apenas vira para mim, solta a fumaça do cigarro na minha cara, dá as costas e vai para sua cadeira. Sem dizer palavra.

Um humorista. Sem nenhum humor.

Enquanto se afastava, o diretor do programa veio falar comigo. “Liga não garoto. Ele é assim mesmo” dizia enquanto balançava a cabeça em sinal de negação. Uma coisa era evidente no olhar de todos que estavam ali trabalhando: ninguém gostava do cara.

Já passava de meia-noite e eu ainda estava no motel.

Era num motel que eram feitas a gravação do quadro “Salci Fufu”. Não sabia em que motel estava, nem mesmo em que bairro era, ou até mesmo se havia algum ponto de referência nos arredores. Era um motel, era em São Paulo, e era tudo o que eu sabia.

As pessoas corriam de um lado pro outro, todas ocupadas, enquanto o “astro” continuava sentado em sua cadeira, fumando e gritando com algum pobre coitado que na correria acabava encostando nele. Sua fisionomia sempre séria, uma cara de poucos amigos que dizia “cai fora daqui e sai de perto de mim seu pedaço de merda” de um jeito bem direto. Sorrisos e gracinhas e gentilezas? Aparentemente, apenas o led vermelho das câmeras eram dignos de recebê-los.

“Esse cara é um idiota” diz um velho que estava atrás de mim. “Um verdadeiro babaca. Cigarro? Conhaque? Estou tentando parar de fumar, mas nesse clima é difícil não querer um cigarro.”

Estava frio, e eu também estava parando de fumar. Mas aceitei o conhaque.

“Esse cara é um babaca. Só porque fez um pouquinho de sucesso na TV já se acha melhor que todo mundo. Ele não vai olhar na sua cara se não tiver nenhuma câmera ligada. Primeira vez aqui?”

Digo que sim, enquanto matava a última dose do conhaque. Ele me conta que já era a terceira vez que participava do programa, que praticamente toda a equipe já o conhecia e o tratavam já como se fosse da casa, mas mesmo assim o cara só lhe dirigia palavra quando estavam gravando. Fora das câmeras, nem mesmo um perto de mão.

“Eu ainda venho porque é uma boa propaganda do meu número. A quantidade de shows sempre aumenta depois que apareço na TV.” Ele me mostra então uma serra Makita, daquelas de lâmina circular, usadas para cortar ripas e caibros em madeireiras. Passei o dedo; a lâmina era real. E afiada. “Eu ligo a serra e faço a lâmina parar de rodar usando apenas a língua” disse, orgulhoso. Havia ali também duas garotas e dois rapazes, todos na faixa dos 20 anos e aparência de modelo. Uma delas correu na direção do velho quando esse ia jogar a bituca do cigarro fora. “Espera!” Tomou a bituca das mãos dele, e começou a fumar. “Eu adoro bitucas de cigarro! E aquele restinho quente e amargo que fica nas latinhas de cerveja. Meus amigos falam que eu sou a pessoa ideal pra se chamar pra sair.” E, depois de duas belas tragadas em um toco de filtro praticamente sem tabaco, jogou o cigarro no chão e voltou para a roda da beleza. Não muito tempo depois o diretor foi até onde estavam e apontou para uma moça e um rapaz. “Você! Você! Pro carro. Gravamos em cinco minutos.” O apresentador se levantou e seguiu para a saída do motel, passando ao meu lado sem esboçar qualquer sinal de simpatia. Os dois que ficaram se aproximaram e vieram puxar papo. “Já faz alguns meses que tô nisso. Eles ligam pra agência, a gente vem e finge que tá saindo do motel pra darem o flagra no programa. Mas, cem conto pra entrar num carro e fazer cara de constrangida? Pra mim tá ótimo.”

Pergunto se o humorista não costuma flertar com as meninas que chamam pro programa. “Sim. Mas ele não gosta de pagar pelo serviço. É um babaca.”

De onde estávamos, era possível escutar os barulhos da gravação. As risadas, os gritos, as piadas...toda a falsa alegria que é reservada apenas para os milhões de desconhecidos sentados em seus sofás, alheios a tudo aquilo que acontece por detrás das câmeras. Alheios ao fato de que a pessoa que os faz rir é um babaca, se não de nascença ao menos por maioria de votos.

A noite continua. O show acaba. O diretor traz o documento de direitos de imagem parar ser assinado, e me aponta o carro e o motorista que irá me levar para casa. Enquanto atravesso o estacionamento do motel, quase sou atropelado por um sedan que saía a toda. Era ele. Grito; mando o filho da puta à merda com gosto. As pessoas em volta esboçam um sorriso de cumplicidade; estão satisfeitas por alguém finalmente ter dito aquilo em voz alta.

O motorista abre a porta do carro. “Liga não, ele é assim mesmo. Um tremendo babaca.” Vamos conversando durante todo o caminho, e ele vai me contando detalhes de sua vida; detalhes tão comuns e banais que na manhã seguinte já não me lembrava quais eram. Mas naquele momento eram tão interessantes quanto qualquer outro assunto que pudesse quebrar o silêncio sempre constrangedor de um carro desconhecido.

Em certo momento, perguntei a ele se assistia sempre ao programa. “Não. Não gosto. Acho muito apelativo.”

Talvez o cara lá estivesse certo. Talvez seja esse o segredo.

Estar alheio.

Ninguém gosta daquilo que conhece.

E, pelo menos a impressão que ficou daquele dia, é que ele não faz nenhuma questão de conhecer ninguém. Um verdadeiro babaca filho da puta. Mas com muito mais reconhecimento do que todas as pessoas legais que o rodeavam.

Resta só saber se vale a pena...

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