Já
passava de meia-noite quando as filmagens começaram.
“Em
seus lugares....Atenção....!” Ao lado da câmera o diretor se
comunicava por gestos...três dedos em riste...dois dedos...somente o
indicador....o polegar levantado. Começava a gravação.
“Boa
noite! Iéié! Salci-fufu!!” Pulinhos e gracinhas e gestos idiotas
e vozinhas irritantes e segue o show.
“O
que você faz meu filho?”
“Eu
mordo o cotovelo.”
“Você
faaaazzzzz....OOOOOO QUEEEEEE?”
“Eu
mordo o cotovelo.”
“CORTA!
Foi ótimo garoto!”
Sem
dizer palavra, ele vira a cara e acende o cigarro. Ainda me encontro
parado ao seu lado, sem saber muito bem o que fazer, o diretor,
câmeras e contra-regras correndo de um lado para outro. Olho
embasbacado, sem saber o que fazer, o que dizer. Ele apenas vira para
mim, solta a fumaça do cigarro na minha cara, dá as costas e vai
para sua cadeira. Sem dizer palavra.
Um
humorista. Sem nenhum humor.
Enquanto
se afastava, o diretor do programa veio falar comigo. “Liga não
garoto. Ele é assim mesmo” dizia enquanto balançava a cabeça em
sinal de negação. Uma coisa era evidente no olhar de todos que
estavam ali trabalhando: ninguém gostava do cara.
Já
passava de meia-noite e eu ainda estava no motel.
Era
num motel que eram feitas a gravação do quadro “Salci Fufu”.
Não sabia em que motel estava, nem mesmo em que bairro era, ou até
mesmo se havia algum ponto de referência nos arredores. Era um
motel, era em São Paulo, e era tudo o que eu sabia.
As
pessoas corriam de um lado pro outro, todas ocupadas, enquanto o
“astro” continuava sentado em sua cadeira, fumando e gritando com
algum pobre coitado que na correria acabava encostando nele. Sua
fisionomia sempre séria, uma cara de poucos amigos que dizia “cai
fora daqui e sai de perto de mim seu pedaço de merda” de um jeito
bem direto. Sorrisos e gracinhas e gentilezas? Aparentemente, apenas
o led vermelho das câmeras eram dignos de recebê-los.
“Esse
cara é um idiota” diz um velho que estava atrás de mim. “Um
verdadeiro babaca. Cigarro? Conhaque? Estou tentando parar de fumar,
mas nesse clima é difícil não querer um cigarro.”
Estava
frio, e eu também estava parando de fumar. Mas aceitei o conhaque.
“Esse
cara é um babaca. Só porque fez um pouquinho de sucesso na TV já
se acha melhor que todo mundo. Ele não vai olhar na sua cara se não
tiver nenhuma câmera ligada. Primeira vez aqui?”
Digo
que sim, enquanto matava a última dose do conhaque. Ele me conta que
já era a terceira vez que participava do programa, que praticamente
toda a equipe já o conhecia e o tratavam já como se fosse da casa,
mas mesmo assim o cara só lhe dirigia palavra quando estavam
gravando. Fora das câmeras, nem mesmo um perto de mão.
“Eu
ainda venho porque é uma boa propaganda do meu número. A quantidade
de shows sempre aumenta depois que apareço na TV.” Ele me mostra
então uma serra Makita, daquelas de lâmina circular, usadas para
cortar ripas e caibros em madeireiras. Passei o dedo; a lâmina era
real. E afiada. “Eu ligo a serra e faço a lâmina parar de rodar
usando apenas a língua” disse, orgulhoso. Havia ali também duas
garotas e dois rapazes, todos na faixa dos 20 anos e aparência de
modelo. Uma delas correu na direção do velho quando esse ia jogar a
bituca do cigarro fora. “Espera!” Tomou a bituca das mãos dele,
e começou a fumar. “Eu adoro bitucas de cigarro! E aquele restinho
quente e amargo que fica nas latinhas de cerveja. Meus amigos falam
que eu sou a pessoa ideal pra se chamar pra sair.” E, depois de
duas belas tragadas em um toco de filtro praticamente sem tabaco,
jogou o cigarro no chão e voltou para a roda da beleza. Não muito
tempo depois o diretor foi até onde estavam e apontou para uma moça
e um rapaz. “Você! Você! Pro carro. Gravamos em cinco minutos.”
O apresentador se levantou e seguiu para a saída do motel, passando
ao meu lado sem esboçar qualquer sinal de simpatia. Os dois que
ficaram se aproximaram e vieram puxar papo. “Já faz alguns meses
que tô nisso. Eles ligam pra agência, a gente vem e finge que tá
saindo do motel pra darem o flagra no programa. Mas, cem conto pra
entrar num carro e fazer cara de constrangida? Pra mim tá ótimo.”
Pergunto
se o humorista não costuma flertar com as meninas que chamam pro
programa. “Sim. Mas ele não gosta de pagar pelo serviço. É um
babaca.”
De
onde estávamos, era possível escutar os barulhos da gravação. As
risadas, os gritos, as piadas...toda a falsa alegria que é reservada
apenas para os milhões de desconhecidos sentados em seus sofás,
alheios a tudo aquilo que acontece por detrás das câmeras. Alheios
ao fato de que a pessoa que os faz rir é um babaca, se não de
nascença ao menos por maioria de votos.
A
noite continua. O show acaba. O diretor traz o documento de direitos
de imagem parar ser assinado, e me aponta o carro e o motorista que
irá me levar para casa. Enquanto atravesso o estacionamento do
motel, quase sou atropelado por um sedan que saía a toda. Era ele.
Grito; mando o filho da puta à merda com gosto. As pessoas em volta
esboçam um sorriso de cumplicidade; estão satisfeitas por alguém
finalmente ter dito aquilo em voz alta.
O
motorista abre a porta do carro. “Liga não, ele é assim mesmo. Um
tremendo babaca.” Vamos conversando durante todo o caminho, e ele
vai me contando detalhes de sua vida; detalhes tão comuns e banais
que na manhã seguinte já não me lembrava quais eram. Mas naquele
momento eram tão interessantes quanto qualquer outro assunto que
pudesse quebrar o silêncio sempre constrangedor de um carro
desconhecido.
Em
certo momento, perguntei a ele se assistia sempre ao programa. “Não.
Não gosto. Acho muito apelativo.”
Talvez
o cara lá estivesse certo. Talvez seja esse o segredo.
Estar
alheio.
Ninguém
gosta daquilo que conhece.
E,
pelo menos a impressão que ficou daquele dia, é que ele não faz
nenhuma questão de conhecer ninguém. Um verdadeiro babaca filho da
puta. Mas com muito mais reconhecimento do que todas as pessoas
legais que o rodeavam.
Resta
só saber se vale a pena...
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