quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Parado nas Parada

 
“Ow, passa aqui em casa lá pelas vinte pras uma?”

“Passo! (e lavo também!)”

E foi assim, com duas frases e uma piada bem ruim, que eu e o Machado – vulgo João Pedro – combinamos nossa ida à Parada Gay (na verdade o nome do evento é 5a Parada da Diversidade de Bauru, mas esse nome é muito longo e....grosso....*suspiro*...) no dia seguinte. Minha primeira ida a uma Parada dessas – o que pode ser normal para um jovem hétero de 25 anos mas que, se considerar que esse mesmo jovem já está a cerca de sete pseudo-focado no estudo das artes, e a uns quatro passeando entre um curso e outro da área de Humanas em faculdades públicas, é um absurdo que ainda não tivesse ido em nenhuma, principalmente porque morei dois anos em Campinas. Mas dessa vez não iria me dar ao luxo de ficar em casa dormindo; o domingo estava reservado para a Parada e, mesmo que me desse uma baita preguiça de última hora, teria alguém para ficar tocando a campainha de casa e me fazer sair da cama.

E foi mais ou menos isso que aconteceu no dia seguinte. Depois de cerca de quatro dias seguidos de insônia, dormindo menos de 3 horas por noite, o sábado se mostrou um manancial de tranquilidade e sono pesado, que fez com que eu acordasse a pouco menos de dez minutos do horário combinado. Bem, quem precisa almoçar, não é mesmo? Então, utilizando da habilidade adquirida durante os anos de colocar a calça ao mesmo tempo que escovo os dentes, em menos de cinco minutos já estava pronto para mais um dia de (des)serviço.

Já passava das uma quando a campainha tocou.

“Ae Nóia, malz me atrasar, mas foi meio que proposital. Afinal, todas suas histórias começam com alguém se atrasando, eu não queria ser diferente.”

Um momento histórico na minha curta vida de jornalista folgado; mal comecei a escrever e já tenho um clichê formulado, carimbado, assinado, com firma reconhecida em cartório e aceito pela sociedade.

Mas não era hora de pensar nisso, mas sim de caminhar. Não que o lugar fosse muito longe, afinal a Praça da Paz, local onde ocorreria a concentração antes de seguir para o Parque Vitória Régia, era a cerca de dez minutos de casa a pé. Mas a ideia era chegar cedo, pra poder aproveitar ao máximo as bizarrices que apenas um evento desse tipo pode proporcionar.

“Cara, acredita que é a primeira vez que eu tô indo na Parada?”

“Eu também. Nem quero saber o que minha mãe vai falar disso. Ela acha que se eu for na Parada Gay eu vou acabar virando gay. Tipo, qual o problema? Eu fui na Marcha das Vadias!”

“Mas você é uma vadia.”

“Eu sei, mas minha mãe não precisa saber disso.”

Bem, depois dessa revelação, acho que eu posso excluir “mãe do Machado” da minha lista de possíveis leitores.

A primeira cena estranha do dia já acontece duas quadras antes do local, no quarteirão seguinte ao Ragazzo da Av. Nações Unidas. Parados na esquina, dois perfeitos “maninhos”, com camisa regata, calça dois números maiores, cueca aparecendo e gorrinho de lã, enquanto um sol de quase 30oC queimava qualquer um que se aventurasse a sair de casa naquela tarde de domingo. Um estava de cócoras, mexendo numa bolsa, enquanto o outro se mantinha em pé, parado, meio que tampando a visão de quem passava pela avenida, e olhando apreensivo de um lado para outro. Uma cena que já havia visto muitas vezes nas minhas saídas noturnas: apenas mais dois moleques achando que escrever mlk doida libera já 4:20 e um desenho de folha de maconha ou qualquer coisa do tipo os tornariam “rebeldes” e “másculos”; nada muito diferente de qualquer cidade por onde já passei. O meu espanto com aquela cena se dá mais pelo fato de que nunca vi fazerem algo do tipo num lugar tão movimentado e tão à vista em plena luz do dia. Aquilo sim era rebeldia! Mas então a cena logo se desdobra numa conclusão mais lógica (?), e o camarada que está abaixado tira da bolsa, ao invés de uma lata de spray, um espelho com um estojinho e começa a retocar a maquiagem. O domingo prometia...

Na Praça da Paz, o clima era de festa. Apesar de ainda vazio, dois trios elétricos já animavam as poucas pessoas que chegaram cedo às ruas. A Nações já estava com o trecho que a Parada percorreria interditado, e polícia e bombeiros já estavam de prontidão nos entornos para qualquer emergência. Depois de um volta rápida pelo local, fui fazer o que faço de melhor: achei um canto na sombra de um prédio, encostei no poste e ali fiquei, fazendo cara de mal e observando o movimento.

Aos poucos as pessoas iam chegando. De ônibus, vans, carro, moto, a pé e até mesmo a cavalo, a Praça foi ficando cada vez mais lotada de gente. Bauru, São Manuel, Agudos, Lençóis Paulista, Pirajuí, Botucatu, Rio Claro, Sorocaba, Ribeirão Preto...pessoas vindos de todos os cantos iam preenchendo as ruas, trazendo um colorido e animação nada característicos às sonolentas tardes de domingo bauruense; mas esse é um tipo de informação que parece não ser assim tão claro para todos; como para o rapaz loiro, no auge dos seus vinte anos, com um ar de perdido no rosto que dizia claramente que estava vindo pela primeira vez à cidade, e somente por causa da Parada, que me perguntou onde ficava a Praça da Paz. Educadamente, respondi que estávamos nela, mas fiquei me perguntando: que tipo de pessoa acha que, seja em qualquer cidade do interior paulista (ou talvez até mesmo na capital), ruas fechadas, trios elétricos decorados com bexigas coloridas simbolizando um arco-íris tocando música dançante no talo, pessoas sem camisa ou produzidas no melhor estilo “coadjuvante de Priscila – A Rainha do Deserto” dançando pela rua com latinhas de cerveja na mão e senhoras de meia-idade com camisetas de ONGs distribuindo camisinhas entre os presentes fazem parte da rotina de uma tarde de domingo? Ou realmente fazem, e é eu que preciso sair mais de casa?

Esse fluxo de pensamento é cortado por uma das senhorinhas de meia-idade com camiseta de ONG, que me cutuca e oferece um folheto explicativo sobre os perigos da AIDS, além de uma cartela com 4 camisinhas. Eu pego sem nem bem olhar pra cara da mulher, mais ou menos como sempre faço quando ando pela rua e me oferecem folhetos de dentistas, baladas, condomínios e pessoas que compram ouro. Já estava voltando para a minha posição estática de observação quando ela educadamente me pergunta “precisa de mais?”, ao que eu educadamente respondo (até mesmo esboçando um sorriso!) “não, obrigado”, esperando que ela sorria de volta e siga seu caminho. Mas qual não foi minha surpresa quando ela fechou a cara e soltou um “hmmm...”, cheio de descrença, antes de continuar seu trabalho. O que queria dizer aquele “hmmm...”? Será que ela me achou humilde demais, e duvidou que quatro camisinhas seriam o suficiente pra minha noite (que, ao acabar a noite e minha expectativa de zero ser atingida, bati oficialmente o recorde brasileiro de seca que até então pertencia ao sertão nordestino)? Prefiro acreditar que sim; seria o melhor elogio que recebi no ano.

A tarde se arrasta com o mau humor de velho ranzinza que não almoçou, enquanto a felicidade dos foliões de Agosto preenche as ruas cada vez mais cheias dos entornos da Praça. E logo 50 mil pessoas estavam lá, pulando, gritando, dançando. “Sua biscate! É só ver um bando de homem sarado que já vai correndo pra perto!”; 50 mil pessoas numa alegre manifestação política prontamente ignorada por boa parte dos presentes. E daí que o prefeito estava entregando uma cópia do processo de habilitação para Charles e Cauê, o primeiro casal de mesmo sexo a oficializar a união civil na cidade, criando mais um capítulo vitorioso na longa história de batalhas no país para que a igualdade de direitos para todos seja, realmente, para todos? E daí que a história dessa luta vem de longa data, desde 1969, quando, na cidade de Nova York, gays e lésbicas cansaram de serem espancados e presos por sua opção sexual e resolveram se juntar e mudar a situação, num movimento que ficou conhecido como a “Rebelião de Stonewall”? E daí? Afinal, não é isso o que realmente importa no evento, pelo menos não de acordo com as postagens que movimentam o grupo dele no Facebook. “Quem vai sair namorando da Parada bate aqui!”, “quem vai beijar muito na Parada é nóis”, “quem aqui vai sair da Parada casado?”, e tantas outras mensagens de tamanha ansiedade davam o tom da preparação para o evento na rede social. O fato é que, para muitos que estavam ali, a Parada não era diferente de uma noite de sexta na Labirinthus (prestigiada boate gay na cidade de Bauru), só que de graça e, por isso, bombando mais, tornando um evento de caráter político-revolucionário em apenas mais um de tantos carnavais fora de época, deixando claro o fato de que, mesmo entre as minorias, é apenas uma minoria que se importa, enquanto o resto reclama de perseguição mas não consegue deixar de lado seus anseios egoístas para que as coisas mudem; no fim, a única coisa que realmente diferencia as variadas minorias da imensa e única maioria é a matemática, os números violentamente reais dos muitos que reclamam de tudo e fazem ainda mais barulho quando alguma coisa finalmente muda. Poucos são aqueles que realmente se preocupam, que agem, que geram mudanças. Se sacrificam. E são, invariavelmente, esquecidos; o sentimento de mudança coletiva deposto pela realização do ego daqueles que ignoram que, até bem pouco tempo, nada daquela diversão poderia ser realizada sem que o resultado final fosse chumbo, paulada e cana.
Quantos daqueles 50 mil realmente sabem da importância de um evento como aquele, de como ele tem influência direta em suas vidas que vai além do fato de se ter ou não um namorado?Provavelmente bem poucos; uma meia-dúzia de gato pingado, no máximo. Gostaria de estar errado, mas sou cético demais pra acreditar nisso. Poucos realmente estão ali por um objetivo; o resto está ali apenas pelo circo, massa de manobra e grosso de gente que dá números expressivos ao evento.

Fato que, tristemente, parece ser o praxe em qualquer manifestação política brasileira.

Mas não parece haver espaço para lamentação em meio a tanta música, dança, sorrisos, gritos e pegação que tomam conta da avenida mais movimentada da cidade nos cerca de dois quilômetros do percurso a ser percorrido até o Parque Vitória Régia, onde uma noite de grandes shows encerrará o evento. Claro que, logicamente, não para quem está escrevendo, esse pseudo-jornalista casmurro e mal-humorado que odeio dança e pegação e, principalmente, grandes aglomerações de pessoas. Claramente estava ali por puros princípios profissionais, e por puros princípios profissionais iria acompanhar aquilo até o final. E assim fui até chegar no Parque Vitória Régia, onde a noite seria encerrada com um grande show da banda Teatro Mágico. E, realmente, foi um show mágico. Tão mágico que, só ao ouvir os primeiros acordes, eu magicamente me percebi na frente do portão de casa, ainda recuperando o fôlego enquanto tentava acertar a chave para destravá-lo e, o mais rápido possível, cair na cama.

E logo na cama estava, caído, lutando contra o sono e o cansaço e tentando pensar em como montaria o texto sobre o evento, esperando que meu estômago roncando se satisfizesse com a digestão de informações. Mas, aparentemente, aquele era um prato muito pesado, e nada me vinha à cabeça de como poderia resumir aquilo tudo. Nada além de uma menininha linda de uns dois anos de idade, de cabelo chanelzinho e vestidinho azul cheio de bichinhos, andando e olhando maravilhada, apontando para as pessoas na rua, enquanto a mãe a puxava apressada pela mão, dizendo “sim filha, tem balão, tá tudo lindo”. E fico pensando naquela garotinha, fascinada com toda aquela movimentação, todo aquele colorido, toda aquela novidade e, mesmo sem entender nada do que acontecia, com um sorriso no rosto e brilho no olhar de quem quer fazer parte de tudo aquilo.

Porque tava lindo. E tinha balão.

Mas também tinha muito mais por trás, uma beleza que costuma não penetrar através de nossas muralhas “protetoras” de preconceito, mas que foi percebida por uma menininha que mal havia saído das fraldas. E que me deixa sem saber se devo sentir orgulho; ou vergonha.

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