“Ow, passa aqui em
casa lá pelas vinte pras uma?”
“Passo! (e lavo
também!)”
E foi assim, com duas
frases e uma piada bem ruim, que eu e o Machado – vulgo João Pedro
– combinamos nossa ida à Parada Gay (na verdade o nome do evento é
5a Parada da Diversidade de Bauru, mas esse
nome é muito longo e....grosso....*suspiro*...) no dia seguinte.
Minha primeira ida a uma Parada dessas – o que pode ser normal para
um jovem hétero de 25 anos mas que, se considerar que esse mesmo
jovem já está a cerca de sete pseudo-focado no estudo das artes, e
a uns quatro passeando entre um curso e outro da área de Humanas em
faculdades públicas, é um absurdo que ainda não tivesse ido em
nenhuma, principalmente porque morei dois anos em Campinas. Mas dessa
vez não iria me dar ao luxo de ficar em casa dormindo; o domingo
estava reservado para a Parada e, mesmo que me desse uma baita
preguiça de última hora, teria alguém para ficar tocando a
campainha de casa e me fazer sair da cama.
E foi mais
ou menos isso que aconteceu no dia seguinte. Depois de cerca de
quatro dias seguidos de insônia, dormindo menos de 3 horas por
noite, o sábado se mostrou um manancial de tranquilidade e sono
pesado, que fez com que eu acordasse a pouco menos de dez minutos do
horário combinado. Bem, quem precisa almoçar, não é mesmo? Então,
utilizando da habilidade adquirida durante os anos de colocar a calça
ao mesmo tempo que escovo os dentes, em menos de cinco minutos já
estava pronto para mais um dia de (des)serviço.
Já
passava das uma quando a campainha tocou.
“Ae
Nóia, malz me atrasar, mas foi meio que proposital. Afinal, todas
suas histórias começam com alguém se atrasando, eu não queria ser
diferente.”
Um momento
histórico na minha curta vida de jornalista folgado; mal comecei a
escrever e já tenho um clichê formulado, carimbado, assinado, com
firma reconhecida em cartório e aceito pela sociedade.
Mas não
era hora de pensar nisso, mas sim de caminhar. Não que o lugar fosse
muito longe, afinal a Praça da Paz, local onde ocorreria a
concentração antes de seguir para o Parque Vitória Régia, era a
cerca de dez minutos de casa a pé. Mas a ideia era chegar cedo, pra
poder aproveitar ao máximo as bizarrices que apenas um evento desse
tipo pode proporcionar.
“Cara,
acredita que é a primeira vez que eu tô indo na Parada?”
“Eu
também. Nem quero saber o que minha mãe vai falar disso. Ela acha
que se eu for na Parada Gay eu vou acabar virando gay. Tipo, qual o
problema? Eu fui na Marcha das Vadias!”
“Mas
você é uma vadia.”
“Eu sei,
mas minha mãe não precisa saber disso.”
Bem,
depois dessa revelação, acho que eu posso excluir “mãe do
Machado” da minha lista de possíveis leitores.
A primeira
cena estranha do dia já acontece duas quadras antes do local, no
quarteirão seguinte ao Ragazzo da Av. Nações Unidas. Parados na
esquina, dois perfeitos “maninhos”, com camisa regata, calça
dois números maiores, cueca aparecendo e gorrinho de lã, enquanto
um sol de quase 30oC
queimava qualquer um que se aventurasse a sair de casa naquela tarde
de domingo. Um estava de cócoras, mexendo numa bolsa, enquanto o
outro se mantinha em pé, parado, meio que tampando a visão de quem
passava pela avenida, e olhando apreensivo de um lado para outro. Uma
cena que já havia visto muitas vezes nas minhas saídas noturnas:
apenas mais dois moleques achando que escrever mlk
doida libera já 4:20 e
um desenho de folha de maconha ou qualquer coisa do tipo os tornariam
“rebeldes” e “másculos”; nada muito diferente de qualquer
cidade por onde já passei. O meu espanto com aquela cena se dá mais
pelo fato de que nunca vi fazerem algo do tipo num lugar tão
movimentado e tão à vista em plena luz do dia. Aquilo sim era
rebeldia! Mas então a cena logo se desdobra numa conclusão mais
lógica (?), e o camarada que está abaixado tira da bolsa, ao invés
de uma lata de spray, um espelho com um estojinho e começa a retocar
a maquiagem. O domingo prometia...
Na
Praça da Paz, o clima era de festa. Apesar de ainda vazio, dois
trios elétricos já animavam as poucas pessoas que chegaram cedo às
ruas. A Nações já estava com o trecho que a Parada percorreria
interditado, e polícia e bombeiros já estavam de prontidão nos
entornos para qualquer emergência. Depois de um volta rápida pelo
local, fui fazer o que faço de melhor: achei um canto na sombra de
um prédio, encostei no poste e ali fiquei, fazendo cara de mal e
observando o movimento.
Aos
poucos as pessoas iam chegando. De ônibus, vans, carro, moto, a pé
e até mesmo a cavalo, a Praça foi ficando cada vez mais lotada de
gente. Bauru, São Manuel, Agudos, Lençóis Paulista, Pirajuí,
Botucatu, Rio Claro, Sorocaba, Ribeirão Preto...pessoas vindos de
todos os cantos iam preenchendo as ruas, trazendo um colorido e
animação nada característicos às sonolentas tardes de domingo
bauruense; mas esse é um tipo de informação que parece não ser
assim tão claro para todos; como para o rapaz loiro, no auge dos
seus vinte anos, com um ar de perdido no rosto que dizia claramente
que estava vindo pela primeira vez à cidade, e somente por causa da
Parada, que me perguntou onde ficava a Praça da Paz. Educadamente,
respondi que estávamos nela, mas fiquei me perguntando: que tipo de
pessoa acha que, seja em qualquer cidade do interior paulista (ou
talvez até mesmo na capital), ruas fechadas, trios elétricos
decorados com bexigas coloridas simbolizando um arco-íris tocando
música dançante no talo, pessoas sem camisa ou produzidas no melhor
estilo “coadjuvante de Priscila – A Rainha do Deserto” dançando
pela rua com latinhas de cerveja na mão e senhoras de meia-idade com
camisetas de ONGs distribuindo camisinhas entre os presentes fazem
parte da rotina de uma tarde de domingo? Ou realmente fazem, e é eu
que preciso sair mais de casa?
Esse
fluxo de pensamento é cortado por uma das senhorinhas de meia-idade
com camiseta de ONG, que me cutuca e oferece um folheto explicativo
sobre os perigos da AIDS, além de uma cartela com 4 camisinhas. Eu
pego sem nem bem olhar pra cara da mulher, mais ou menos como sempre
faço quando ando pela rua e me oferecem folhetos de dentistas,
baladas, condomínios e pessoas que compram ouro. Já estava voltando
para a minha posição estática de observação quando ela
educadamente me pergunta “precisa de mais?”, ao que eu
educadamente respondo (até mesmo esboçando um sorriso!) “não,
obrigado”, esperando que ela sorria de volta e siga seu caminho.
Mas qual não foi minha surpresa quando ela fechou a cara e soltou um
“hmmm...”, cheio de descrença, antes de continuar seu trabalho.
O que queria dizer aquele “hmmm...”? Será que ela me achou
humilde demais, e duvidou que quatro camisinhas seriam o suficiente
pra minha noite (que, ao acabar a noite e minha expectativa de zero
ser atingida, bati oficialmente o recorde brasileiro de seca que até
então pertencia ao sertão nordestino)? Prefiro acreditar que sim;
seria o melhor elogio que recebi no ano.
A
tarde se arrasta com o mau humor de velho ranzinza que não almoçou,
enquanto a felicidade dos foliões de Agosto preenche as ruas cada
vez mais cheias dos entornos da Praça. E logo 50 mil pessoas estavam
lá, pulando, gritando, dançando. “Sua biscate! É só ver um
bando de homem sarado que já vai correndo pra perto!”; 50 mil
pessoas numa alegre manifestação política prontamente ignorada por
boa parte dos presentes. E daí que o prefeito estava entregando uma
cópia do processo de habilitação para Charles e Cauê, o primeiro
casal de mesmo sexo a oficializar a união civil na cidade, criando
mais um capítulo vitorioso na longa história de batalhas no país
para que a igualdade de direitos para todos seja, realmente, para
todos? E daí que a história dessa luta vem de longa data, desde
1969, quando, na cidade de Nova York, gays e lésbicas cansaram de
serem espancados e presos por sua opção sexual e resolveram se
juntar e mudar a situação, num movimento que ficou conhecido como a
“Rebelião de Stonewall”? E daí? Afinal, não é isso o que
realmente importa no evento, pelo menos não de acordo com as
postagens que movimentam o grupo dele no Facebook. “Quem vai sair
namorando da Parada bate aqui!”, “quem vai beijar muito na Parada
é nóis”, “quem aqui vai sair da Parada casado?”, e tantas
outras mensagens de tamanha ansiedade davam o tom da preparação
para o evento na rede social. O fato é que, para muitos que estavam
ali, a Parada não era diferente de uma noite de sexta na Labirinthus
(prestigiada boate gay na cidade de Bauru), só que de graça e, por
isso, bombando mais, tornando um evento de caráter
político-revolucionário em apenas mais um de tantos carnavais fora
de época, deixando claro o fato de que, mesmo entre as minorias, é
apenas uma minoria que se importa, enquanto o resto reclama de
perseguição mas não consegue deixar de lado seus anseios egoístas
para que as coisas mudem; no fim, a única coisa que realmente
diferencia as variadas minorias da imensa e única maioria é a
matemática, os números violentamente reais dos muitos que reclamam
de tudo e fazem ainda mais barulho quando alguma coisa finalmente
muda. Poucos são aqueles que realmente se preocupam, que agem, que
geram mudanças. Se sacrificam. E são, invariavelmente, esquecidos;
o sentimento de mudança coletiva deposto pela realização do ego
daqueles que ignoram que, até bem pouco tempo, nada daquela diversão
poderia ser realizada sem que o resultado final fosse chumbo, paulada
e cana.
Quantos
daqueles 50 mil realmente sabem da importância de um evento como
aquele, de como ele tem influência direta em suas vidas que vai além
do fato de se ter ou não um namorado?Provavelmente bem poucos; uma
meia-dúzia de gato pingado, no máximo. Gostaria de estar errado,
mas sou cético demais pra acreditar nisso. Poucos realmente estão
ali por um objetivo; o resto está ali apenas pelo circo, massa de
manobra e grosso de gente que dá números expressivos ao evento.
Fato
que, tristemente, parece ser o praxe em qualquer manifestação
política brasileira.
Mas
não parece haver espaço para lamentação em meio a tanta música,
dança, sorrisos, gritos e pegação que tomam conta da avenida mais
movimentada da cidade nos cerca de dois quilômetros do percurso a
ser percorrido até o Parque Vitória Régia, onde uma noite de
grandes shows encerrará o evento. Claro que, logicamente, não para
quem está escrevendo, esse pseudo-jornalista casmurro e mal-humorado
que odeio dança e pegação e, principalmente, grandes aglomerações
de pessoas. Claramente estava ali por puros princípios
profissionais, e por puros princípios profissionais iria acompanhar
aquilo até o final. E assim fui até chegar no Parque Vitória
Régia, onde a noite seria encerrada com um grande show da banda
Teatro Mágico. E, realmente, foi um show mágico. Tão mágico que,
só ao ouvir os primeiros acordes, eu magicamente me percebi na
frente do portão de casa, ainda recuperando o fôlego enquanto
tentava acertar a chave para destravá-lo e, o mais rápido possível,
cair na cama.
E
logo na cama estava, caído, lutando contra o sono e o cansaço e
tentando pensar em como montaria o texto sobre o evento, esperando
que meu estômago roncando se satisfizesse com a digestão de
informações. Mas, aparentemente, aquele era um prato muito pesado,
e nada me vinha à cabeça de como poderia resumir aquilo tudo. Nada
além de uma menininha linda de uns dois anos de idade, de cabelo
chanelzinho e vestidinho azul cheio de bichinhos, andando e olhando
maravilhada, apontando para as pessoas na rua, enquanto a mãe a
puxava apressada pela mão, dizendo “sim filha, tem balão, tá
tudo lindo”. E fico pensando naquela garotinha, fascinada com toda
aquela movimentação, todo aquele colorido, toda aquela novidade e,
mesmo sem entender nada do que acontecia, com um sorriso no rosto e
brilho no olhar de quem quer fazer parte de tudo aquilo.
Porque
tava lindo. E tinha balão.
Mas
também tinha muito mais por trás, uma beleza que costuma não
penetrar através de nossas muralhas “protetoras” de preconceito,
mas que foi percebida por uma menininha que mal havia saído das
fraldas. E que me deixa sem saber se devo sentir orgulho; ou
vergonha.
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