sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Uma influência


Dizem que a primeira vez a gente nunca esquece. Ou algo do tipo.
Pois foi bem assim minha história com Gaiman; bem algo do tipo.
Eram meados de 2003 – época que estudava em período integral, mas passava mais tempo matando aula do que realmente na escola. Mas, apesar de naquela época já ostentar os cabelos compridos, a cara de mau e a pose de rock and roll rebel, ainda era um nerd de carteirinha e, ao invés de sair por aí arranjando brigas, largava a escola para ir visitar as livrarias dos diferentes shoppings da cidade – Nobel, Saraiva e Siciliano. Apesar de andar sempre com o dinheiro contado para almoçar e pegar ônibus – coisa que não mudou muito nesses anos todos – e nem poder pensar em comprar livros, gostava de ir até esses lugares para lê-los. Quem já estudou em escola técnica sabe como a oferta por livros – livros de verdade! Não manuais e tratados sobre física e matemática – em suas bibliotecas é escassa, e por isso eu gostava tanto de ir nessas livrarias, sentar nas cadeiras ou sofás que sempre existiam nelas, escolher alguma obra ao acaso e lê-las até o fim, muitas vezes ficando direto desde manhãzinha até a noite. Lembro que certa vez cheguei na Siciliano já no meio da tarde, sem tempo para ler um livro mais extenso. E, nesses casos, a seção de quadrinhos era sempre uma boa pedida. Nos altos dos meus 16 anos, o que mais me chamava atenção eram os mangás japoneses, com suas histórias repetidas que na época ainda considerava originais, coisas como Dragon Ball Z, Cavaleiros do Zodíaco, Yu-Yu Hakusho e tantos outros que a premissa era sempre de um grupo de adolescentes bem afeiçoados com super-poderes e enorme conhecimento de artes marciais que salvavam o mundo. Mas naquele dia uma outra coisa me chamou a atenção: uma revista em capa dura, folhas tamanho ofício, com uma qualidade gráfica que eu nunca tinha visto antes. E, apesar de saber que não deveria julgar um livro pela capa – e nem pelo exorbitante preço de R$69,90 – foi justamente pela capa que resolvi dar a ele uma chance, e levá-lo para a confortável poltrona em que passaria as próximas horas roubando conhecimento sem desembolsar nem um centavo com a loja. Hoje não me lembro mais direito de como era a capa, mais me lembro de cada palavra da frase que me fez, literalmente, me apaixonar por aquilo que tinha em mãos. Presente em algum lugar no meio daquele livro/gibi, que me fez perder o ar por alguns segundos e saber que, a partir daquele momento, não havia mais volta; estava cativado:

“É apenas isso: se você vai ser humano, tem um monte de coisas no pacote. Olhos, um coração, dias e vida. Mas são os momentos que iluminam tudo. O tempo que você não nota que está passando...é isso que faz o resto valer a pena.”

E foi assim minha primeira vez com Gaiman, minha primeira vez com Sandman; não precisou de mais do que dois segundos para saber que era amor para a vida inteira. Desde então, virei um maníaco: passei a frequentar aquela livraria – todas as livrarias – pelo menos uma vez por semana, procurando por mais material daquele ilustre desconhecido que, de uma hora pra outra, havia ultrapassado Tolkien, Shakespeare e Wilde para se tornar meu escritor favorito. E isso porque eu ainda achava que ele só escrevia quadrinhos! Quando descobri suas obras literárias – primeiro com Belas Maldições, que até hoje é o meu livro preferido, e então com Deuses Americanos – comecei a criar cada vez mais certeza de que não estava de frente apenas de um bom quadrinista; estava presenciando o surgimento daquele que ainda viria a ser um dos mais escritores de todos os tempos. E, mesmo que mal tivesse saído das fraldas, não tinha a menor duvida disso.
E os anos passaram.
E, como sabia que não dava pra confiar num molecão que ainda achava A Praça é Nossa algo engraçado, quanto mais velho e chato ia ficando, novamente voltava aos livros e quadrinhos de Gaiman para mais uma vistoria. Afinal, uma hora acabaria achando falhas, e falando “Ahá! Eu sabia que aquilo tudo era só uma patifaria para enganar adolescentes semiculturados que se acham a última rapadura da estante!”
O grande problema é que nunca achava falhas. Apenas linhas narrativas e referências cada vez mais sutis e geniais que me passavam despercebidos antes.
Se um dos fatores que fazem uma obra clássica é o fato de sempre encontrarmos algo novo a cada leitura subsequente, posso dizer sem medo que Gaiman já nasceu clássico.
E trabalhar com a obra desse cara foi algo que eu sempre quis fazer.
Mexer com ele – e convencer mais quatro pessoas que nunca haviam ouvido falar dele – é um trabalho extremamente prazeroso. Muito cansativo, porque cada aspecto desvendado revela outros aspectos que sempre haviam passado batido, que por sua vez revelam outros, num círculo de fios narrativos e temáticos que parece não ter fim; mas, mesmo assim, prazeroso. E isso se dá em grande parte ao fato das pessoas que não o conheciam, ao entrarem em contato com ele, te encontrarem pelos corredores da faculdade e te falarem “porra! O cara é genial!” e eu poder assentir com a cabeça, num gesto silencioso, enquanto conservo internamente um sorriso de orgulho que diz apenas “eu sei. Sempre soube.”
Porque ele é mesmo genial.
Não só já é considerado pela crítica como o maior escritor vivo - com uma carreira de pouco mais de 20 anos que já contém quase 150 prêmios literários e artísticas de todo o mundo – ainda é jovem e, diferentemente dos “grandes nomes” que vemos por aí, nem um pouco pretensioso. Mais do que o cara que vai em Cannes assistir os filmes que irão balançar ou não a crítica especializada, ele é o cara que vai na estréia do novo filme do Batman – simplesmente porque gosta do Batman. Mais do que o cara que vai nos grandes museus posar ao lado de Michelangelos e Da Vincis, é aquele que, num final de semana de bobeira, resolve juntar os amigos e produzir um álbum inteiro de rock em apenas 24h, incluindo aí composição e gravação de todas as músicas. Mais do que um cara que é tido cada vez mais como o grande escritor dos séculos XX e XXI, ele é o cara que tem orgulho de ter surgido de um gênero tão marginalizado quanto os quadrinhos. Mais do que o cara que se orgulha de ter viajado por praticamente todos os países do mundo e ter sua obra traduzida em praticamente todas as principais línguas, ele é o cara que fica feliz por não precisar acordar antes do meio-dia para exercer sua profissão. E que vive numa mansão igual à da Família Adams do seriado dos anos 60 – o que é sempre um motivo a mais pra se gostar dele.
Mais do que tudo isso, ele é um cara que nunca se importou em ser culto, ou de fugir da “indústria cultural”. Ele apenas gosta de inventar histórias, e contá-las; e é isso que vem fazendo durante muito tempo.
E é isso que faz dele alguém com que qualquer um, independente do gosto ou da pretensão artística, acabe se identificando com ele. Mais do que um personagem, ele é uma pessoa comum.
Ou pode ser tudo puxa-saquismo de minha parte. Vai saber. Escrevendo a essas horas da madrugada depois de um semana dormindo mal, não dá pra ter mais certeza de nada.
Apenas de que o cara é o melhor escritor que eu já conheci. E isso pra mim basta.

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