Dizem que a primeira
vez a gente nunca esquece. Ou algo do tipo.
Pois foi bem assim
minha história com Gaiman; bem algo do tipo.
Eram meados de 2003 –
época que estudava em período integral, mas passava mais tempo
matando aula do que realmente na escola. Mas, apesar de naquela época
já ostentar os cabelos compridos, a cara de mau e a pose de rock
and roll rebel, ainda era um
nerd de carteirinha e,
ao invés de sair por aí arranjando brigas, largava a escola para ir
visitar as livrarias dos diferentes shoppings da cidade – Nobel,
Saraiva e Siciliano. Apesar de andar sempre com o dinheiro contado
para almoçar e pegar ônibus – coisa que não mudou muito nesses
anos todos – e nem poder pensar em comprar livros, gostava de ir
até esses lugares para lê-los. Quem já estudou em escola técnica
sabe como a oferta por livros – livros de verdade! Não manuais e
tratados sobre física e matemática – em suas bibliotecas é
escassa, e por isso eu gostava tanto de ir nessas livrarias, sentar
nas cadeiras ou sofás que sempre existiam nelas, escolher alguma
obra ao acaso e lê-las até o fim, muitas vezes ficando direto desde
manhãzinha até a noite. Lembro que certa vez cheguei na Siciliano
já no meio da tarde, sem tempo para ler um livro mais extenso. E,
nesses casos, a seção de quadrinhos era sempre uma boa pedida. Nos
altos dos meus 16 anos, o que mais me chamava atenção eram os
mangás japoneses, com suas histórias repetidas que na época ainda
considerava originais, coisas como Dragon Ball Z,
Cavaleiros do Zodíaco, Yu-Yu Hakusho e
tantos outros que a premissa era sempre de um grupo de adolescentes
bem afeiçoados com super-poderes e enorme conhecimento de artes
marciais que salvavam o mundo. Mas naquele dia uma outra coisa me
chamou a atenção: uma revista em capa dura, folhas tamanho ofício,
com uma qualidade gráfica que eu nunca tinha visto antes. E, apesar
de saber que não deveria julgar um livro pela capa – e nem pelo
exorbitante preço de R$69,90 – foi justamente pela capa que
resolvi dar a ele uma chance, e levá-lo para a confortável poltrona
em que passaria as próximas horas roubando conhecimento sem
desembolsar nem um centavo com a loja. Hoje não me lembro mais
direito de como era a capa, mais me lembro de cada palavra da frase
que me fez, literalmente, me apaixonar por aquilo que tinha em mãos.
Presente em algum lugar no meio daquele livro/gibi, que me fez perder
o ar por alguns segundos e saber que, a partir daquele momento, não
havia mais volta; estava cativado:
“É
apenas isso: se você vai ser humano, tem um monte de coisas no
pacote. Olhos, um coração, dias e vida. Mas são os momentos que
iluminam tudo. O tempo que você não nota que está passando...é
isso que faz o resto valer a pena.”
E
foi assim minha primeira vez com Gaiman, minha primeira vez com
Sandman; não precisou de mais do que dois segundos para saber que
era amor para a vida inteira. Desde então, virei um maníaco: passei
a frequentar aquela livraria – todas as livrarias – pelo menos
uma vez por semana, procurando por mais material daquele ilustre
desconhecido que, de uma hora pra outra, havia ultrapassado Tolkien,
Shakespeare e Wilde para se tornar meu escritor favorito. E isso
porque eu ainda achava que ele só escrevia quadrinhos! Quando
descobri suas obras literárias – primeiro com Belas
Maldições, que até hoje é o
meu livro preferido, e então com Deuses Americanos –
comecei a criar cada vez mais certeza de que não estava de frente
apenas de um bom quadrinista; estava presenciando o surgimento
daquele que ainda viria a ser um dos mais escritores de todos os
tempos. E, mesmo que mal tivesse saído das fraldas, não tinha a
menor duvida disso.
E
os anos passaram.
E,
como sabia que não dava pra confiar num molecão que ainda achava A
Praça é Nossa algo engraçado,
quanto mais velho e chato ia ficando, novamente voltava aos livros e
quadrinhos de Gaiman para mais uma vistoria. Afinal, uma hora
acabaria achando falhas, e falando “Ahá! Eu sabia que aquilo tudo
era só uma patifaria para enganar adolescentes semiculturados que se
acham a última rapadura da estante!”
O
grande problema é que nunca achava falhas. Apenas linhas narrativas
e referências cada vez mais sutis e geniais que me passavam
despercebidos antes.
Se
um dos fatores que fazem uma obra clássica é o fato de sempre
encontrarmos algo novo a cada leitura subsequente, posso dizer sem
medo que Gaiman já nasceu clássico.
E
trabalhar com a obra desse cara foi algo que eu sempre quis fazer.
Mexer
com ele – e convencer mais quatro pessoas que nunca haviam ouvido
falar dele – é um trabalho extremamente prazeroso. Muito
cansativo, porque cada aspecto desvendado revela outros aspectos que
sempre haviam passado batido, que por sua vez revelam outros, num
círculo de fios narrativos e temáticos que parece não ter fim;
mas, mesmo assim, prazeroso. E isso se dá em grande parte ao fato
das pessoas que não o conheciam, ao entrarem em contato com ele, te
encontrarem pelos corredores da faculdade e te falarem “porra! O
cara é genial!” e eu poder assentir com a cabeça, num gesto
silencioso, enquanto conservo internamente um sorriso de orgulho que
diz apenas “eu sei. Sempre soube.”
Porque
ele é mesmo genial.
Não
só já é considerado pela crítica como o maior escritor vivo -
com uma carreira de pouco mais de 20 anos que já contém quase 150
prêmios literários e artísticas de todo o mundo – ainda é jovem
e, diferentemente dos “grandes nomes” que vemos por aí, nem um
pouco pretensioso. Mais do que o cara que vai em Cannes assistir os
filmes que irão balançar ou não a crítica especializada, ele é o
cara que vai na estréia do novo filme do Batman – simplesmente
porque gosta do Batman. Mais do que o cara que vai nos grandes museus
posar ao lado de Michelangelos e Da Vincis, é aquele que, num final
de semana de bobeira, resolve juntar os amigos e produzir um álbum
inteiro de rock em apenas 24h, incluindo aí composição e gravação
de todas as músicas. Mais do que um cara que é tido cada vez mais
como o grande escritor dos séculos XX e XXI, ele é o cara que tem
orgulho de ter surgido de um gênero tão marginalizado quanto os
quadrinhos. Mais do que o cara que se orgulha de ter viajado por
praticamente todos os países do mundo e ter sua obra traduzida em
praticamente todas as principais línguas, ele é o cara que fica
feliz por não precisar acordar antes do meio-dia para exercer sua
profissão. E que vive numa mansão igual à da Família Adams do
seriado dos anos 60 – o que é sempre um motivo a mais pra se
gostar dele.
Mais
do que tudo isso, ele é um cara que nunca se importou em ser culto,
ou de fugir da “indústria cultural”. Ele apenas gosta de
inventar histórias, e contá-las; e é isso que vem fazendo durante
muito tempo.
E
é isso que faz dele alguém com que qualquer um, independente do
gosto ou da pretensão artística, acabe se identificando com ele.
Mais do que um personagem, ele é uma pessoa comum.
…
Ou
pode ser tudo puxa-saquismo de minha parte. Vai saber. Escrevendo a
essas horas da madrugada depois de um semana dormindo mal, não dá
pra ter mais certeza de nada.
Apenas
de que o cara é o melhor escritor que eu já conheci. E isso pra mim
basta.
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