Vivemos
num mundo de instituições. Não só instituições físicas, mas
espirituais, ideais, morais. Mundo de valores institucionais em
constante mudança; bancos tomam o lugar inabalável do casamento, e
recebem ajuda de todos os deuses das cifras públicas estatais para
que o “até que a morte os separe” não venha acontecer nessa
vida; a instituição de família já não é tão importante quanto
a de capital familiar; pessoas que já não sabem mais o que fazer
para instituir lares, que se tornam cada vez mais parecidos com
prisões, mantendo “cidadãos de bem” encurralados em suas
próprias celas, amedrontados cada vez mais com a vida que continua a
seguir do lado de fora; a instituição de intuições baseadas em
estatísticas vomitadas diariamente por jornais que querem apenas nos
mostrar a “verdade” enxergada através das verdinhas.
Entre
tantas falidas e em processo de decomposição, temos também a
instituição intelectual, que assume variadas formas; o “cala a
boca, senta e desenha” do jardim de infância, onde aprendemos que
todo o padrão de arte se concentra na busca de novos Picassos e
Dalís, que são carinhosamente cedidos ao lixo ao término do
período; o “fica quieto e estude” que se é ouvido durante nove
longos anos para que podemos finalmente chegar na fase final do “fica
quieto que isso cai no vestibular”. Ah, o vestibular! Fase final da
nossa instituição intelectual, o casebre dourado do pensamento, o
formador definitivo do profissional sem-graça! O suprassumo da
ignorância fundamentada! O lugar em que, finalmente, depois de
tantos anos, podemos travestir nossos egos com uma manta de papel
“diploma”, que nos ensina que a idiotice pode ser totalmente
aniquilada com uma simples quinquilharia de parede. A instituição
máxima da intelectualidade alheia!
E
ainda dentro desta existem várias instituições internas; a mais
socialmente importante também a mais intelectualmente desprezível –
ou vice-versa. A instituição das festas. Apenas quem vive no
ambiente universitário sabe o quanto as festas são importantes;
deve-se frequentá-las, mesmo que não se goste de álcool, de música
ruim, ou de pessoas, já que são esses três elementos que podem ser
encontrados em profusão em qualquer uma delas. Não importa o tema:
“100 anos de Jamaica”, “Mamãe Quero Ser Gay”, “1001 Noites
na Bahia”; depois de certas horas e certo grau alcoólico, tudo
vira um baile funk de classe média, num “libera geral” em que as
pessoas dançam as mesmas músicas, “dão os mesmos bafos”, e
contam as mesmas histórias “vergonhosas” no dia seguinte. Toda
semana. A mesma coisa. E você tem que ir. Mesmo que não goste;
afinal, quem não vai em festa é “esnobe”, “antissocial”,
“não gosta dos colegas de curso”; e se eu for todas essas coisas
mesmo? É contra a lei por acaso?
E
é. Contra a lei da convivência social na universidade. Não vá em
festas e você começa a ser ignorado, pessoas passam ao seu lado do
corredor e fingem que não te conhecem. Lógico que esse problema não
existe se você for uma garota de rosto bonito, peitos grandes e/ou
bumbum empinado; estou falando de pessoas que sabem o que é rejeição
social. E se você não possui nenhum dos atributos necessários para
ser aceito socialmente, como um bom corpo, bom carro ou boa carteira,
o sacrifício de ser arroz-de-festa é algo que pode salvar sua vida
no campus.
E,
mesmo para quem não vai em todas, algumas são “fundamentais”
(caso se pretenda ser considerado uma pessoa existente após quatro
anos). Uma dessas é o “Jornalcoólico” - a festa de “libertação”
dos “bichos” de jornalismo noturno da Unesp de Bauru. Uma
importância social tão grande que faz com que, mesmo quem nunca
tenha ido em nenhuma festa antes, fique uma hora sentado na rua
esperando para que se abram os portões da casa onde tudo irá rolar.
Casa que possui toda a área do quintal de terra; festa que acontece
após três dias de chuva incessante. Não consigo decidir se é
muita vontade de encher a cara, ou muito medo de ser excluído
socialmente, que faz alguém ir pra uma festa dessas sabendo que,
invariavelmente, sairá cheio de barro e cheirando misto de álcool,
vômito e maconha. E ainda chegar uma hora antes de abrir os portões!
De qualquer jeito, aqui estamos, eu e mais umas vinte pessoas, todas
encostadas no portão e torcendo para que a chuva, que parece ter
dado trégua, não torne a cair durante a madrugada.
O
que se vê é um tipo de “esquenta” que fecha a calçada; pessoas
fumando e bebendo e acenando e gritando para os carros e ônibus que
passam pela rua. Piadas sem graça de cunho sexual sendo contadas;
“causos” de festas anteriores sendo relembrados; vez ou outra
alguém chutando o portão e gritando para abrir logo, e sendo
prontamente ignorado pelos ocupantes da casa. Até que, com quase uma
hora de atraso (o que, considerando-se a prática, dá pra se dizer
que começou pontualmente), alguém aparece à porta e fala “entra
só os bichos”. Um pede pra namorada entrar junto, outro o amigo.
Logo todo mundo está dentro da casa, bicho, namorado, agregado ou
apenas curioso. Somos então colocados em fila indiana para receber
um carimbo na testa. Porcos. Gado. E rindo de tudo. Alguém grita
“junta os bichos pra foto”, enquanto pessoas passam derrubando
pinga goela abaixo dos fotografados. Pedra 90. 51 é luxo. Ninguém é
obrigado a beber. Ninguém recusa. Cara, você sabe desde quando
existe essa festa? “Sei lá. Bebe aí.” Bebe aí. Essa é a
resposta pra tudo. Ninguém parece ligar pra nada. Pra que saber
quando foi a primeira festa? Quem a criou? Quais os rumos que ela vai
tomar? Se na manhã seguinte metade dos presentes terá prova, ou
terminar de escrever um trabalho para entregar aquela noite, ou uma
reportagem que já tá com o deadline vencido. “Bebe aí”. A
resposta para todos os problemas da vida universitária.
E o
pior é que estão certos. Desce a cachaça! Cadê a cerveja?
Mas
a cerveja só seria liberada após o “batismo”. E é para isso
que todo o gado é conduzido para o curral interno. E, um a um, cada
cabeça é chamada para se prostrar à frente da multidão e receber
sua “vacina”; duas seringas de vodka barata e groselha estragada
que descem quase como gasolina batizada com mijo. Mas todos bebem,
sem fazer cara feia. É a tradição. A tradição do batismo. A
instituição da festa. Não deve haver quebra de decoro; é
antiético. Antitético. Antiestético. O decoro é anestésico,
anestesiante, anestático. Uma “porradinha” ainda espera na
saída. E desce decoro!
Liberam
a cerveja e os drinks; a música toca; a festa começa. Uma
cerveja....duas cervejas...sete cervejas...não sei se é a idade
avançada ou o fígado já detonado por antibióticos desde cedo, mas
é estranho se sentir começando enquanto as pessoas já estão
chegando lá. Chegando lá....não faz nem duas horas de festa e as
pessoas já passaram de lá.
Você está num canto bebendo sua cerveja tranquilamente e alguém
passa cambaleante e encosta no seu braço, quase derrubando sua
bebida, e diz gritando e com um sorriso enorme no rosto como acha
você uma pessoa legal. E tropeça nas próprias pernas ao dizer
isso. E você, como o cavalheiro que é, a segura antes que caia no
chão e fala que também gosta bastante dela; a mesma pessoa que,
durante as últimas....sei lá, seis ou sete semanas....passava por
você pelos corredores e não dizia nem bom dia. Mas se a bebedeira é
uma religião, na bebida somos todos irmãos, e amamos o próximo, e
nos amamos, e amamos o mundo, e o amor é tão infinito quanto os
copos cheios do open
bar. E então ela se vai, se apoiando nas rodas de conversa enquanto
tropeça nas próprias pernas. E outra te abraça, grita em seu
ouvido que você é lindo, e então te dá as costas para, nem dois
passos depois, cair de cara no chão, vomitar e levantar como se nada
tivesse acontecido. E todos riem. E, ainda com um filete de bile,
restos de miojo Turma da Mônica sabor tomate, Pedra 90 e Dolly, se
agarra e começa trocar beijos calientes com
o amigo gay, duas longas cobras de carne brigando pelo espaço de
duas bocas que se faz uma, sem preocupar-se com aquele outro pedaço
de carne, lembrança do almoço, que tenta encontrar seu espaço para
fora daquela batalha. Olhar para a frente é olhar para o futuro;
pessoas compromissadas dando fortes amassos descompromissados com
quem quer que chegasse muito perto, que logo estariam escrevendo
sobre a falta de ética na profissão; rapazes que saem gritando e
xingando e chutando e mostrando toda sua raiva após levarem um fora,
e que dali alguns anos estarão escrevendo belíssimos textos exigindo
o decoro de parlamentares; garotas que sobem em cima dos freezers e
das bancadas usadas como bar e fazem danças provocantes dignas de
strippers, enquanto se esfregam nos rapazes que estão em volta
curtindo o show, e que depois participarão de passeatas e escreverão
editoriais e reportagens cheias de ardor e paixão exigindo que se
pare de pensar na mulher como objeto sexual; FILHA DA
PUTA!!!!;LINDOS!!!!; cara, te considero pra caramba! Pra caramba
mesmo! Você sabe que se precisar....tamo aí....é....tá aqui no
peito!; vômitos e gemidos de prazer; a inigualável sinfonia de
bêbados conhecidos e alcoólatras anônimos. O futuro do jornalismo
do Brasil! E que, muito provavelmente, entrarão no mercado de
trabalho, formarão sua família e criarão seus filhos ignorando
todas essas experiências e pintando-se como alunos e pessoas
exemplares, paladinos da moral e dons bons costumes. Tudo muito
errado!
Mas não preciso apenas olhar para frente; posso também olhar pra
baixo. Olhar pra baixo é me desvencilhar do mar da hipocrisia
futurística e dar conta do copo vazio em minhas mãos. E perceber
uma belezinha sentada no chão, derrubada pelo álcool. Nuggets!
“Quero ir embora”; meu passaporte para fora. Chamo o ruivo e
carregamos a menina para fora da festa; ombro a ombro, tentando andar
em linha reta e esconder o nível alcoólico em que ambos estavam.
Uma pequena caminhada de 2km, mais cansativa pelo bêbado chato que
nos viu saindo da festa e que resolveu nos seguir sem parar de falar
um minuto sequer no nosso ouvido do que propriamente pelo peso que a
gente estava carregando nos ombros, e chegamos na casa da menina. A
deixo na cama dela, sem os sapatos e debaixo do cobertor, enquanto
peço pro ruivo segurar o bêbado do lado de fora da casa. Dou um
pequeno susto na colega de quarto dela, mas logo ela levanta e me
ajuda na tarefa; afinal, pra quem mora em república ver um bêbado
invadindo o quarto no meio da madrugada com alguém ainda mais bêbado
nos braços já não é muita novidade.
Serviço
terminado, faltava descobrir o que fazer com o camarada que havia nos
seguido. Comer algo parecia ser uma boa ideia. Deus seja louvado
pelos fast-foods 24h!
Comprei comida suficiente para três pessoas. Sentamos no ponto de
ônibus e começamos a comer...ou pelo menos alguns de nós...porque
nosso amigo mala simplesmente vomitou e desmaiou apenas com o cheiro
da comida! O ruivo me olhou com cara de preocupação, faço sinal
pra ele nem ligar, e continuamos comendo. E assim ficamos durante uns
bons minutos, comendo tranquilamente e discutindo sobre assuntos
cotidianos enquanto, ali do lado, estava um colega de curso, caído
desacordado em cima do próprio vômito. E lá ele ficaria, se já
não estivesse sóbrio o bastante para voltar a ouvir minha
consciência e ficar com pena do camarada. Então mais uma vez pedi
ajuda do ruivo, e nos forçamos a carregá-lo até a minha casa.
Depois de mais um pequeno esforço para subir as escadas, jogamos o
saco-de-batatas (ou seria ainda uma pessoa?) no colchão reserva que
tenho em meu quarto e damos a noite por encerrada; o ruivo vai
embora, eu vou pro chuveiro.
Fico quase meia-hora embaixo da água corrente, deixando-a escorrer
e purificar corpo e mente daquela vida noturna. Mas ainda consigo
sentir o cheiro de álcool e vômito que impregna meu quarto, e os
resmungos de alguém que ainda que quase em coma alcoólico consegue
reclamar do por que demoramos tanto para jogá-lo num colchão. Não
importa o quanto eu tente lavar minhas mãos de toda aquele sujeira;
o meio está impregnado com aquilo. Não importa que eu esteja limpo
e imaculado; o odor da corrupção e hipocrisia me seguirá
onde quer que eu esteja. O que resta fazer é ignorar, enfiar a
cabeça no travesseiro e tentar dormir. Ainda que em meio à merda.
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