sábado, 25 de agosto de 2012

A “revolução” dos biXos


Vivemos num mundo de instituições. Não só instituições físicas, mas espirituais, ideais, morais. Mundo de valores institucionais em constante mudança; bancos tomam o lugar inabalável do casamento, e recebem ajuda de todos os deuses das cifras públicas estatais para que o “até que a morte os separe” não venha acontecer nessa vida; a instituição de família já não é tão importante quanto a de capital familiar; pessoas que já não sabem mais o que fazer para instituir lares, que se tornam cada vez mais parecidos com prisões, mantendo “cidadãos de bem” encurralados em suas próprias celas, amedrontados cada vez mais com a vida que continua a seguir do lado de fora; a instituição de intuições baseadas em estatísticas vomitadas diariamente por jornais que querem apenas nos mostrar a “verdade” enxergada através das verdinhas.
Entre tantas falidas e em processo de decomposição, temos também a instituição intelectual, que assume variadas formas; o “cala a boca, senta e desenha” do jardim de infância, onde aprendemos que todo o padrão de arte se concentra na busca de novos Picassos e Dalís, que são carinhosamente cedidos ao lixo ao término do período; o “fica quieto e estude” que se é ouvido durante nove longos anos para que podemos finalmente chegar na fase final do “fica quieto que isso cai no vestibular”. Ah, o vestibular! Fase final da nossa instituição intelectual, o casebre dourado do pensamento, o formador definitivo do profissional sem-graça! O suprassumo da ignorância fundamentada! O lugar em que, finalmente, depois de tantos anos, podemos travestir nossos egos com uma manta de papel “diploma”, que nos ensina que a idiotice pode ser totalmente aniquilada com uma simples quinquilharia de parede. A instituição máxima da intelectualidade alheia!
E ainda dentro desta existem várias instituições internas; a mais socialmente importante também a mais intelectualmente desprezível – ou vice-versa. A instituição das festas. Apenas quem vive no ambiente universitário sabe o quanto as festas são importantes; deve-se frequentá-las, mesmo que não se goste de álcool, de música ruim, ou de pessoas, já que são esses três elementos que podem ser encontrados em profusão em qualquer uma delas. Não importa o tema: “100 anos de Jamaica”, “Mamãe Quero Ser Gay”, “1001 Noites na Bahia”; depois de certas horas e certo grau alcoólico, tudo vira um baile funk de classe média, num “libera geral” em que as pessoas dançam as mesmas músicas, “dão os mesmos bafos”, e contam as mesmas histórias “vergonhosas” no dia seguinte. Toda semana. A mesma coisa. E você tem que ir. Mesmo que não goste; afinal, quem não vai em festa é “esnobe”, “antissocial”, “não gosta dos colegas de curso”; e se eu for todas essas coisas mesmo? É contra a lei por acaso?
E é. Contra a lei da convivência social na universidade. Não vá em festas e você começa a ser ignorado, pessoas passam ao seu lado do corredor e fingem que não te conhecem. Lógico que esse problema não existe se você for uma garota de rosto bonito, peitos grandes e/ou bumbum empinado; estou falando de pessoas que sabem o que é rejeição social. E se você não possui nenhum dos atributos necessários para ser aceito socialmente, como um bom corpo, bom carro ou boa carteira, o sacrifício de ser arroz-de-festa é algo que pode salvar sua vida no campus.
E, mesmo para quem não vai em todas, algumas são “fundamentais” (caso se pretenda ser considerado uma pessoa existente após quatro anos). Uma dessas é o “Jornalcoólico” - a festa de “libertação” dos “bichos” de jornalismo noturno da Unesp de Bauru. Uma importância social tão grande que faz com que, mesmo quem nunca tenha ido em nenhuma festa antes, fique uma hora sentado na rua esperando para que se abram os portões da casa onde tudo irá rolar. Casa que possui toda a área do quintal de terra; festa que acontece após três dias de chuva incessante. Não consigo decidir se é muita vontade de encher a cara, ou muito medo de ser excluído socialmente, que faz alguém ir pra uma festa dessas sabendo que, invariavelmente, sairá cheio de barro e cheirando misto de álcool, vômito e maconha. E ainda chegar uma hora antes de abrir os portões! De qualquer jeito, aqui estamos, eu e mais umas vinte pessoas, todas encostadas no portão e torcendo para que a chuva, que parece ter dado trégua, não torne a cair durante a madrugada.
O que se vê é um tipo de “esquenta” que fecha a calçada; pessoas fumando e bebendo e acenando e gritando para os carros e ônibus que passam pela rua. Piadas sem graça de cunho sexual sendo contadas; “causos” de festas anteriores sendo relembrados; vez ou outra alguém chutando o portão e gritando para abrir logo, e sendo prontamente ignorado pelos ocupantes da casa. Até que, com quase uma hora de atraso (o que, considerando-se a prática, dá pra se dizer que começou pontualmente), alguém aparece à porta e fala “entra só os bichos”. Um pede pra namorada entrar junto, outro o amigo. Logo todo mundo está dentro da casa, bicho, namorado, agregado ou apenas curioso. Somos então colocados em fila indiana para receber um carimbo na testa. Porcos. Gado. E rindo de tudo. Alguém grita “junta os bichos pra foto”, enquanto pessoas passam derrubando pinga goela abaixo dos fotografados. Pedra 90. 51 é luxo. Ninguém é obrigado a beber. Ninguém recusa. Cara, você sabe desde quando existe essa festa? “Sei lá. Bebe aí.” Bebe aí. Essa é a resposta pra tudo. Ninguém parece ligar pra nada. Pra que saber quando foi a primeira festa? Quem a criou? Quais os rumos que ela vai tomar? Se na manhã seguinte metade dos presentes terá prova, ou terminar de escrever um trabalho para entregar aquela noite, ou uma reportagem que já tá com o deadline vencido. “Bebe aí”. A resposta para todos os problemas da vida universitária.
E o pior é que estão certos. Desce a cachaça! Cadê a cerveja?
Mas a cerveja só seria liberada após o “batismo”. E é para isso que todo o gado é conduzido para o curral interno. E, um a um, cada cabeça é chamada para se prostrar à frente da multidão e receber sua “vacina”; duas seringas de vodka barata e groselha estragada que descem quase como gasolina batizada com mijo. Mas todos bebem, sem fazer cara feia. É a tradição. A tradição do batismo. A instituição da festa. Não deve haver quebra de decoro; é antiético. Antitético. Antiestético. O decoro é anestésico, anestesiante, anestático. Uma “porradinha” ainda espera na saída. E desce decoro!
Liberam a cerveja e os drinks; a música toca; a festa começa. Uma cerveja....duas cervejas...sete cervejas...não sei se é a idade avançada ou o fígado já detonado por antibióticos desde cedo, mas é estranho se sentir começando enquanto as pessoas já estão chegando lá. Chegando lá....não faz nem duas horas de festa e as pessoas já passaram de lá. Você está num canto bebendo sua cerveja tranquilamente e alguém passa cambaleante e encosta no seu braço, quase derrubando sua bebida, e diz gritando e com um sorriso enorme no rosto como acha você uma pessoa legal. E tropeça nas próprias pernas ao dizer isso. E você, como o cavalheiro que é, a segura antes que caia no chão e fala que também gosta bastante dela; a mesma pessoa que, durante as últimas....sei lá, seis ou sete semanas....passava por você pelos corredores e não dizia nem bom dia. Mas se a bebedeira é uma religião, na bebida somos todos irmãos, e amamos o próximo, e nos amamos, e amamos o mundo, e o amor é tão infinito quanto os copos cheios do open bar. E então ela se vai, se apoiando nas rodas de conversa enquanto tropeça nas próprias pernas. E outra te abraça, grita em seu ouvido que você é lindo, e então te dá as costas para, nem dois passos depois, cair de cara no chão, vomitar e levantar como se nada tivesse acontecido. E todos riem. E, ainda com um filete de bile, restos de miojo Turma da Mônica sabor tomate, Pedra 90 e Dolly, se agarra e começa trocar beijos calientes com o amigo gay, duas longas cobras de carne brigando pelo espaço de duas bocas que se faz uma, sem preocupar-se com aquele outro pedaço de carne, lembrança do almoço, que tenta encontrar seu espaço para fora daquela batalha. Olhar para a frente é olhar para o futuro; pessoas compromissadas dando fortes amassos descompromissados com quem quer que chegasse muito perto, que logo estariam escrevendo sobre a falta de ética na profissão; rapazes que saem gritando e xingando e chutando e mostrando toda sua raiva após levarem um fora, e que dali alguns anos estarão escrevendo belíssimos textos exigindo o decoro de parlamentares; garotas que sobem em cima dos freezers e das bancadas usadas como bar e fazem danças provocantes dignas de strippers, enquanto se esfregam nos rapazes que estão em volta curtindo o show, e que depois participarão de passeatas e escreverão editoriais e reportagens cheias de ardor e paixão exigindo que se pare de pensar na mulher como objeto sexual; FILHA DA PUTA!!!!;LINDOS!!!!; cara, te considero pra caramba! Pra caramba mesmo! Você sabe que se precisar....tamo aí....é....tá aqui no peito!; vômitos e gemidos de prazer; a inigualável sinfonia de bêbados conhecidos e alcoólatras anônimos. O futuro do jornalismo do Brasil! E que, muito provavelmente, entrarão no mercado de trabalho, formarão sua família e criarão seus filhos ignorando todas essas experiências e pintando-se como alunos e pessoas exemplares, paladinos da moral e dons bons costumes. Tudo muito errado!
Mas não preciso apenas olhar para frente; posso também olhar pra baixo. Olhar pra baixo é me desvencilhar do mar da hipocrisia futurística e dar conta do copo vazio em minhas mãos. E perceber uma belezinha sentada no chão, derrubada pelo álcool. Nuggets! “Quero ir embora”; meu passaporte para fora. Chamo o ruivo e carregamos a menina para fora da festa; ombro a ombro, tentando andar em linha reta e esconder o nível alcoólico em que ambos estavam. Uma pequena caminhada de 2km, mais cansativa pelo bêbado chato que nos viu saindo da festa e que resolveu nos seguir sem parar de falar um minuto sequer no nosso ouvido do que propriamente pelo peso que a gente estava carregando nos ombros, e chegamos na casa da menina. A deixo na cama dela, sem os sapatos e debaixo do cobertor, enquanto peço pro ruivo segurar o bêbado do lado de fora da casa. Dou um pequeno susto na colega de quarto dela, mas logo ela levanta e me ajuda na tarefa; afinal, pra quem mora em república ver um bêbado invadindo o quarto no meio da madrugada com alguém ainda mais bêbado nos braços já não é muita novidade.
Serviço terminado, faltava descobrir o que fazer com o camarada que havia nos seguido. Comer algo parecia ser uma boa ideia. Deus seja louvado pelos fast-foods 24h! Comprei comida suficiente para três pessoas. Sentamos no ponto de ônibus e começamos a comer...ou pelo menos alguns de nós...porque nosso amigo mala simplesmente vomitou e desmaiou apenas com o cheiro da comida! O ruivo me olhou com cara de preocupação, faço sinal pra ele nem ligar, e continuamos comendo. E assim ficamos durante uns bons minutos, comendo tranquilamente e discutindo sobre assuntos cotidianos enquanto, ali do lado, estava um colega de curso, caído desacordado em cima do próprio vômito. E lá ele ficaria, se já não estivesse sóbrio o bastante para voltar a ouvir minha consciência e ficar com pena do camarada. Então mais uma vez pedi ajuda do ruivo, e nos forçamos a carregá-lo até a minha casa. Depois de mais um pequeno esforço para subir as escadas, jogamos o saco-de-batatas (ou seria ainda uma pessoa?) no colchão reserva que tenho em meu quarto e damos a noite por encerrada; o ruivo vai embora, eu vou pro chuveiro.
Fico quase meia-hora embaixo da água corrente, deixando-a escorrer e purificar corpo e mente daquela vida noturna. Mas ainda consigo sentir o cheiro de álcool e vômito que impregna meu quarto, e os resmungos de alguém que ainda que quase em coma alcoólico consegue reclamar do por que demoramos tanto para jogá-lo num colchão. Não importa o quanto eu tente lavar minhas mãos de toda aquele sujeira; o meio está impregnado com aquilo. Não importa que eu esteja limpo e imaculado; o odor da corrupção e hipocrisia me seguirá onde quer que eu esteja. O que resta fazer é ignorar, enfiar a cabeça no travesseiro e tentar dormir. Ainda que em meio à merda.

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