“Ai Nóia, vamo
comigo! Eu tenho medo de ir sozinha!”
Essa é a grande merda
de quando se cresce lendo histórias de super-heróis: você
simplesmente não consegue dizer não a um rostinho bonito ou
uma donzela pedindo socorro. Ainda mais ambos. Então, desse jeito
tão bisonh – amente sem graça – o que eu saí de casa para ir
em mais uma aula de enrolação e lero-lero na faculdade e acabei no
show da Tiê no Sesc-Bauru.
Que eu só conhecia de
nome.
O triste é pensar que
essa nem é a primeira vez que esse tipo de coisa acontece comigo.
Local de encontro:
ponto de ônibus perto do Tio Guerreiro. Bem
na frente da faculdade, a pouco mais de 200 metros da sala que
supostamente deveria estar caso não achasse tão simples e vantajosa
a ideia de matar aula. Para ir num show! Quem poderia me culpar?
Afinal, um verdadeiro jornalista deve estar por aí, solto no mundo,
presente onde as coisas realmente acontecem,
para ver, ouvir, cheirar, sentir os
acontecimentos e relatá-los para o mundo!
Ou,
pelo menos, era isso que eu dizia para tentar me enganar. O fato é
que eu sou preguiçoso e já matei aula por muito menos. MUITO menos
mesmo.
E,
mais ou menos no horário combinado, eis que surge uma Isabela
correndo pelo campus em direção ao ponto – ou Gonzo, como
preferir. Não que eu consiga imaginar ela fazendo um jornalismo
gonzo – ela não é covarde o suficiente pra isso – mas apelidos
são coisas que te pegam, principalmente quando não combinam com
você. Mais ou menos como o casamento.
“Hey!
Não precisa correr tanto! O ônibus ainda nem chegou!”
“É
que eu fiquei com medo que você já tivesse ido embora! Vem, minha
mãe vai levar a gente.”
Medo
que eu fosse embora...eu só tava lá por causa dela! Mas dá pra
(não) entender – afinal, cada um tem um medo mais estranho que o
outro. Uns tem medo de aranha, outros de altura, alguns de agulha...e
tem aqueles que tem medo de socializar com as pessoas e resolvem
virar jornalistas e fazer justamente isso pro resto de suas vidas.
Então, dá pra (não) entender.
Mas,
sem trocar muitas palavras, fomos para o carro e conheci a mãe dela.
Não colocarei o nome nesse texto por uma questão de privacidade –
e, lógico, não porque sou horrível com nomes e já tinha me
esquecido de como ela se chamava nem cinco segundos depois de sermos
apresentados.
É
estranho conhecer a mãe de alguém – pra dizer o mínimo. O pai
tudo bem, você sempre pode cumprimentar, fazer alguma piada ruim do
tipo “sabe quando um advogado está mentindo? Os lábios dele estão
se mexendo”, falar mal do Corinthians e se despedir combinando de
tomar uma cerveja a qualquer hora – a não ser que o pai em questão
seja o da sua namorada, onde no caso quanto mais tempo ele achar que
você é uma pessoa séria e não um bêbado degenerado sem futuro
que irá levar a filha dele pro “mal caminho”, melhor. Mas a mãe
é sempre complicado. Nunca se sabe o que falar depois do “oi”,
ou mesmo se deve falar qualquer coisa. O costume é responder sempre
com algo monossilábico; oi,
sim, aham.
Mesmo as risadas são curtas, breves, como se houvesse uma culpa
secreta em rir da piada. Acredito que não sou só eu que sempre é
apresentado à mãe de alguém se sente como um soldato
que acabou de entrar na máfia sendo apresentado ao vizinho policial
federal – não sabe se ri, chora, cumprimenta, sai correndo e na
dúvida fica parado com aquela cara de bobo sem expressão repetindo
um mantra mental de merda!merda!merda!mera!será que ele
sabe quem eu sou e veio aqui me prender?merda!merda!merda!merda!
ou algo do tipo.
Pelo
menos eu espero que não seja o único a me sentir desse jeito. Já
tenho problemas sociais demais pra descobrir mais um nessa altura do
campeonato.
Bem,
mas lá estávamos os três: mãe, filha e eu. Num carro. De duas
portas. Então, mesmo que eu achasse uma opção viável pular na
calçada de um veículo em movimento constante de aproximadamente 60
km/h, aquela era uma opção inexistente, já que estava no banco de
trás.
“Mãe,
você acha que eu devo levar a mochila ou só a bolsa da câmara?”
“Câmara
filha? CÂMARA?”
“É
mãe, câmara. Então, o que você acha melhor?”
“Tanto
faz.”
“Mas
daí se eu levar a blusa eu vou ter que ficar com ela pendurada na
cintura...”
“E?”
“Aí
mãe, pára! Que que o Nóia vai pensar te vendo falando assim?”
“Que
ela é divertida?”
Risadas.
Sem culpa. Uma mãe troll, quem diria? Gostei dela.
Chegamos
no SESC cerca de uma hora antes do show. Apesar disso, o espaço em
frente ao palco já estava lotado, e não parava de chegar mais
gente. Será que ela é tão famosa assim e só eu nunca ouvi falar
dela? Conversando com a Isa, descubro que a música dela toca “na
novela das seis...ou das sete...não sei...a que tem a empreguete.”
Aaaaaaaahhhhhh tá! Eu ainda tô boiando e não entendendo nada, mas
tudo bem.
Enquanto
eu bóio, a Isa trabalha. Anda pelo lugar, gravando a galera
conversando e se amontoando em torno ao palco. E eu fico ali perdido,
meio isolado da multidão, fazendo o que faço de melhor: encostar
numa parede e ficar com cara de poucos amigos. Ela então volta, e me
pede pra acompanhá-la até o lado de fora, pois queria gravar o
caminho da entrada até o palco e não queria parecer uma louca
andando perdida com a câmera na mão. Fazendo nada mesmo, a
acompanho, e então somos dois loucos andando perdidos com a câmera
na mão. Eu pergunto se não seria legal ela colher alguns
depoimentos da galera, falando de como conheceram a cantora e o que
esperam do show e tal. E aí ela me fala que tem vergonha.
Você
não precisa conhecer muito a Isa pra saber que, mais do que os
longos cachos de seu cabelo ou seu belo sorriso, o que chama mais a
atenção é a personalidade extrovertida, sempre falante,
sorridente, pulando e correndo e gritando numa animação tão grande
que às vezes parece até que se encheu de cocaína antes de ir pra
aula. Então quando alguém tão extrovertida – e ainda por cima
com experiência em documentários – me fala que tem vergonha de
chegar e falar com as pessoas...
“Vem
comigo”
Num
discurso dado para uma turma de formandos de arte no primeiro
semestre desse ano, o escritor Neil Gaiman disse que, se você não
se sente capaz de fazer algo, finja que é alguém que é capaz
daquilo, e então aja como essa pessoa agiria. É um método estranho
– principalmente porque funciona. E então, lá fui pro meio das
pessoas, puxando a Isa por um dos braços, fingindo que era uma
pessoa sociável e simpática. O que a gente não faz por essas
mulheres...
“Com
licença. Perdão por estar atrapalhando a conversa de vocês, mas eu
estou aqui fazendo um documentário sobre o show da Tiê, e gostaria
de saber se vocês não poderiam falar do que acham dela e das
expectativas para o show. Não precisa ser muita coisa, pode ser bem
breve.”
E,
de repente, eu tinha saído da condição de mero curioso
para diretor de documentário.
Uma verdadeira ascensão meteórica na carreira. Principalmente por
ser sobre um assunto que eu não conhecia nada, e tendo que enrolar
nas perguntas pra que as pessoas não percebessem que estava
totalmente perdido.
O
triste é que essa não era nem a primeira vez que isso me acontecia.
E
lá fomos nós pro meio do povo: eu abrindo caminho com porfavores e
comlicenças, a Isa espalhando rodinhas de alternativos, indies,
kitchs e cults cada vez que apontava a câmera para alguém. E as
perguntas se seguiam: o que esperam do show? Onde vocês
conheceram a Tiê? Acha que ela é uma boa mudança no panorama da
MPB? E as respostas se seguiam:
não sei. Não conheço ela. Vim aqui por que um amigo meu
falou que é legal/porque vi falando bem no jornal/porque as pessoas
falam bem na internet. De umas
dez pessoas entrevistadas, apenas duas realmente conheciam a cantora.
E uma delas tinha vindo de Botucatu apenas para ver o show! Incrível
como as pessoas vão em eventos de artistas que elas não conhecem
apenas porque ouviram alguém falar, ou porque o amigo vai. Mas quem
sou eu para julgar? Eu também estava lá, e teoricamente dirigindo
um documentário sobre o assunto...
Ah,
o nome da menina (era uma menina? Acho que era) que veio de Botucatu?
Sei lá. Nem perguntei. Não é porque eu finjo que sou um jornalista
que magicamente me tornarei um jornalista competente.
E
daí veio aquela coisa que todo jornalista incompetente teme: a
organização do evento. Depois que já tínhamos entrevistado várias
pessoas, chega alguém do SESC e nos pergunta se temos permissão
para colher as imagens. Não tínhamos – precisava permissão? Ele
então nos pede pra falar com o Sammit – ou algo do tipo, o nome do
cara era tão estranho que depois do terceiro hã? a
gente simplesmente balançou a cabeça concordando e procuramos a
pessoa que ele apontava – que era o responsável pelo show. E lá
fomos então falar com o tal.
“De
novo isso...olha, é não. Já falei com o pessoal do site várias
vezes que a gente libera numa boa, é só entrar em contato com
antecedência que a gente concede credencial fácil. Só que enquanto
esse povo trabalhar com tudo em cima da hora a gente vai continuar
negando. Pô, o show tá anunciado a mais de um mês! Dava pra ter
mandado um e-mail pelo menos.”
E
então nos deparamos novamente com a 83,5a
Lei de Newton –
incompetência atrai incompetência, ou algo assim. Parece que não
era só a gente que não fazia as coisas direito – o editor da Isa
também. E não pela primeira vez. Então era isso. A gente desligava
a câmera, via o show e ia embora, certo?
Bem,
não exatamente.
Posso
ser incompetente, mas ninguém pode me chamar de covarde (tá, tudo
bem, de vez em quando – quase sempre – pode). Afinal, estávamos
lá – uso o plural, mas na verdade apenas a Isa tava lá pra isso –
cobrir o evento, gravar vídeos, tirar fotos e fazer o trabalho
jornalístico de rotina, e era isso que iríamos – leia-se ela
iria – fazer! Então, fizemos
aquilo que se esperava que fizéssemos: nos embrenhamos no meio do
povo, ela com a câmera na mão, filmando e tirando fotos como se
nada tivesse acontecido, e eu logo atrás, na bituca, carregando a
bolsa e de olho pra ver se ninguém da produção do evento se
aproximava, para puxá-la pelo braço e levá-la sorrateiramente para
algum outro ponto escondido.
O
triste é que essa também não era a primeira vez que eu fazia algo
do tipo.
E
então, até o final do show, fui destituído de minha posição de
diretor para virar
segurança e contra-regra. Essa
carreira artística-jornalística é mesmo uma verdadeira
montanha-russa...
E
o show? O show seguiu. Ela tocou umas músicas lá, o pessoal
aplaudiu, nada muito fora do normal. Já o pós show...
A
gente já tava saindo do lugar quando o cara de nome esquisito parou
na nossa frente e pediu pra ver a câmera. Num tom intimidatório,
ele disse que percebeu que a gente tava filmando, apesar dele não
nos ter concedido permissão, e que só sairíamos do local caso
deixássemos ele apagar todas as imagens e vídeos da câmera. A Isa
empalideceu, e ficou segurando a bolsa contra o peito,
enquanto ele puxava a alça, tentando tomá-la à força. Então, sem pensar muito, aproveitei um momento de descuido
e dei uma bela bicuda no saco do sujeito – e, como estava calçando
botas, deve ter doído pra caralho (pra caralho, hã?
Entenderam?). Então, antes que pudesse chamar ajuda, peguei a Isa
pelo braço e saímos correndo, subindo as escadas que davam para a
rua e quase derrubando algumas pessoas que subiam por ela. Corremos
como dois esportistas natos, e não como os jovens preguiçosos e
sedentários que somos, e só paramos umas duas esquinas pra frente,
encostando num muro e bufando sem ar, olhando ao redor para ter
certeza que não estávamos sendo seguidos.
...também
não foi nada demais. Essa parte aí de cima é a história que eu
gostaria de poder contar pra vocês, mas a verdade é que ninguém
nem mesmo se importou da gente ter gravado quase que o show inteiro,
e não fizeram nenhum tipo de tentativa de nos impedir de sair. Mas
uma coisa é verdade: não vou perder tempo falando do show aqui. O
show pouco me interessa. Se quiserem saber dele, entrem no site do
e-colab e procurem pela cobertura do evento. Provavelmente vão
achar, além das fotos e vídeos, um texto da Isa falando sobre o
show que será muito mais informativo do que esse daqui (a propaganda
é gratuita, mas se alguém do site quiser me pagar uma cerveja eu não
recuso). O fato é que eu nem prestei atenção direito no show, e
voltei pra casa com a mesma impressão que tinha quando cheguei. Quem
é Tiê? Ela fez uma música pra novela? Ah tá...
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