segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Um barzinho e uma eleição


“Cara, preciso entrevistar alguém sobre os bastidores da política, tem como você falar comigo um pouco sobre?”
“Claro rapaz! Sem problemas! E é uma honra que você tenha pensado em mim pra isso.”
“Na verdade, você era minha terceira opção, mas as duas primeiras furaram.”
“Hahahahahaha!!!! Típico. Mas então, quando e onde você tava pensando?”
“Olha, eu tava pensando em sábado ali entre o final da tarde, começo da noite, num bar meio copo sujo que tem ali atrás da USP, que me deram um toque que é maior frequentado por prostitutas e bêbados.”
“Perfeito. Te encontro lá no bar então.”
“Fechô.”

É isso aí. Nada de lanchonete, sala acústica, Fran's Café ou qualquer desses lugares que se procura paz e tranquilidade com o intuito de “ai, não quero estragar minha sonora.” Jornalismo se faz na rua, no bar, principalmente onde a cerveja é barata e ninguém fica te olhando feio se você passa mais de meia-hora lá dentro sem comprar nada. E, apesar do preconceito quanto a esse tipo de atitude, mesmo entre os próprios colegas de profissão, onde muitos tem o ego tão inflado e a empáfia tão lapidada que chegam a ser achar mais do que homens, deuses, não somente “meros mortais”, tentando esconder de todos – talvez até de si mesmos – sua condição de subcidadão de classe média que estuda durante anos e se orgulha de ter um texto “bem trabalhado” - ainda que seja difícil definir exatamente o que seja essa classificação, já que na enorme parte das vezes esse tal trabalho nada mais é do que preencher com informações atuais uma forma pré-definida e sempre repetida – pra trabalhar bem mais e ganhar bem menos que escrivão de prefeitura de cidade pequena. Mas essa é a vida que a gente escolhe, e tem que se virar nela – por isso mesmo que não abro mão do trabalho old school, dos copos sujos da vida, onde a cerveja é aguada mas é barata, independente das baratas. E tudo fica mais fácil quando o entrevistado é um conhecido e também concorda com isso; Henrique Cézar – Help, Presidente – também é outro desses aspirantes de jornalista que não se iludem com o status da profissão, sabendo que estamos muito mais pra pedintes do que high society – a não ser, é claro, altos de doces e balinhas e tapinhas. Mas não éramos da alta – nem estávamos altos – e fomos prum verdadeiro buteco.
Três elementos definem a qualidade de um buteco – iluminação, ambiente e atendimento. Lugar era escuro, ambiente tocava uma rádio que mistura pagode, sertanejo universitário e música de festa de formatura, e quem nos atendeu era uma garçonete que mais parecia o Ronaldinho Gaúcho com problemas dentários, então, como explica a teoria, estávamos bem servidos.
“Que cervejas vocês tem aqui?”
“Ah, essas que tá aí ó. O preço tá aí do lado.”
“Então me vê uma Antarctica.”
“Ih moço, não tem Antarctica. Só Brahma e Skol.”
“Então desce uma Brahma.”
“Ah, mas eu cabei de lembrar. Cabou a Brahma ontem. Só tem Skol.”
“Então vai Skol mesmo.”
Ela vira e vai buscar o pedido. Eu começo a rir. Não preciso contar pra ela que fomos nós que havíamos acabado com a Brahma na noite anterior, numa daquelas noites que você sai pra tomar uma cervejinha pra segurar o calor e volta pra casa vinte garrafas mais gordo e cinquenta conto mais pobre, apenas pra tomar uma banho e subir pra aula – ou ir trabalhar – em coisa de minutos. Mas rei morto rei posto, missão dada missão cumprida e copo cheio cerveja na mesa e gravador ligado; hora de trabalhar.
“Moço, desculpa atrapalhar vocês dois, mas você não conseguem arrombar um cadeado pra mim não?”
A gente olha pra cara da Galúcho, sem entender nada.
“É que o cara que tem a chave não vem hoje, e é maior trabalho ter que dar a volta pelos fundos pra ir na cozinha. Vocês não conseguem arrombar o cadeado pra mim, fazendo favor?”
É por esse tipo de coisa que eu adoro trabalhar em buteco.
Me levanto meio preguiçoso, deixando gravador ligado e cerveja gelada em cima da mesa, com maior medo de que alguém passando na rua roube minha cerveja. Pergunto se tem alguma ferramenta, Galúcho me oferece uma marreta e uma pá de enxada; a coisa fica cada vez melhor. Chego pra ver o tal do cadeado: parrudo demais pra quebrar só na marreta, pequeno demais pra conseguir usar a enxada de alavanca. Começo a olhar em volta, procurando algo pra ajudar na tarefa, e tentando me lembrar de tudo que aprendi em anos de lockpicking com Fallout, Elder Scrolls e Sherlock Holmes. E então algo me chama a atenção: um araminho de ferro pontiagudo, que os garçons usam para colocar os pedidos anotados; era só enfiar aquilo no buraco do cadeado, dar umas duas ou três marretadas e logo quebraria a trava e forçaria o cadeado a abrir. Batata! Cinco minutos depois voltava para a mesa continuar com minha entrevista e tomar minha gelada, deixando com a Galúcho uma marreta, uma pá de enxada, um arame de pedidos todo retorcido e um cadeado intacto mas que nunca mais iria abrir com sua chave, deixando claro que a escolha do videogame em prol dos trabalhos braçais tinha fundamento.
Mas, enquanto o mundo caia lá fora, dentro a cerveja descia e escondia a minha total falta de preparação para uma entrevista com foco político, onde eu não tinha estudado nada e nem preparado um roteiro a ser seguido, esperando que as respostas de meu entrevistado dessem base para novas perguntas, o que, no fim das contas, convinha com minha formação de jornalista esportivo que não assiste jogo, crítico literário que tem raiva dos clássicos e resenhista de filmes que só vai no cinema pra ver filme do Rambo e dorme de babar quando alguém coloca algo do Bergman; seguindo essa lógica, ser o cara que justifica o voto é um bom passo para virar também jornalista político. Afinal, fazer do migué uma arte é algo que nem todo mundo tem coragem.
Mas o bom migué é pra poucos e, incrivelmente, a entrevista ficou legal e muito mais longa do que eu esperava, revelando um jovem com tantas histórias e opinião bem formada que nem parece que tem apenas dezenove anos. E vocês podem conferi-la aqui mesmo.


Entrevista Henrique Cézar - editada by Rafael Rodrigues 116

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Uma influência


Dizem que a primeira vez a gente nunca esquece. Ou algo do tipo.
Pois foi bem assim minha história com Gaiman; bem algo do tipo.
Eram meados de 2003 – época que estudava em período integral, mas passava mais tempo matando aula do que realmente na escola. Mas, apesar de naquela época já ostentar os cabelos compridos, a cara de mau e a pose de rock and roll rebel, ainda era um nerd de carteirinha e, ao invés de sair por aí arranjando brigas, largava a escola para ir visitar as livrarias dos diferentes shoppings da cidade – Nobel, Saraiva e Siciliano. Apesar de andar sempre com o dinheiro contado para almoçar e pegar ônibus – coisa que não mudou muito nesses anos todos – e nem poder pensar em comprar livros, gostava de ir até esses lugares para lê-los. Quem já estudou em escola técnica sabe como a oferta por livros – livros de verdade! Não manuais e tratados sobre física e matemática – em suas bibliotecas é escassa, e por isso eu gostava tanto de ir nessas livrarias, sentar nas cadeiras ou sofás que sempre existiam nelas, escolher alguma obra ao acaso e lê-las até o fim, muitas vezes ficando direto desde manhãzinha até a noite. Lembro que certa vez cheguei na Siciliano já no meio da tarde, sem tempo para ler um livro mais extenso. E, nesses casos, a seção de quadrinhos era sempre uma boa pedida. Nos altos dos meus 16 anos, o que mais me chamava atenção eram os mangás japoneses, com suas histórias repetidas que na época ainda considerava originais, coisas como Dragon Ball Z, Cavaleiros do Zodíaco, Yu-Yu Hakusho e tantos outros que a premissa era sempre de um grupo de adolescentes bem afeiçoados com super-poderes e enorme conhecimento de artes marciais que salvavam o mundo. Mas naquele dia uma outra coisa me chamou a atenção: uma revista em capa dura, folhas tamanho ofício, com uma qualidade gráfica que eu nunca tinha visto antes. E, apesar de saber que não deveria julgar um livro pela capa – e nem pelo exorbitante preço de R$69,90 – foi justamente pela capa que resolvi dar a ele uma chance, e levá-lo para a confortável poltrona em que passaria as próximas horas roubando conhecimento sem desembolsar nem um centavo com a loja. Hoje não me lembro mais direito de como era a capa, mais me lembro de cada palavra da frase que me fez, literalmente, me apaixonar por aquilo que tinha em mãos. Presente em algum lugar no meio daquele livro/gibi, que me fez perder o ar por alguns segundos e saber que, a partir daquele momento, não havia mais volta; estava cativado:

“É apenas isso: se você vai ser humano, tem um monte de coisas no pacote. Olhos, um coração, dias e vida. Mas são os momentos que iluminam tudo. O tempo que você não nota que está passando...é isso que faz o resto valer a pena.”

E foi assim minha primeira vez com Gaiman, minha primeira vez com Sandman; não precisou de mais do que dois segundos para saber que era amor para a vida inteira. Desde então, virei um maníaco: passei a frequentar aquela livraria – todas as livrarias – pelo menos uma vez por semana, procurando por mais material daquele ilustre desconhecido que, de uma hora pra outra, havia ultrapassado Tolkien, Shakespeare e Wilde para se tornar meu escritor favorito. E isso porque eu ainda achava que ele só escrevia quadrinhos! Quando descobri suas obras literárias – primeiro com Belas Maldições, que até hoje é o meu livro preferido, e então com Deuses Americanos – comecei a criar cada vez mais certeza de que não estava de frente apenas de um bom quadrinista; estava presenciando o surgimento daquele que ainda viria a ser um dos mais escritores de todos os tempos. E, mesmo que mal tivesse saído das fraldas, não tinha a menor duvida disso.
E os anos passaram.
E, como sabia que não dava pra confiar num molecão que ainda achava A Praça é Nossa algo engraçado, quanto mais velho e chato ia ficando, novamente voltava aos livros e quadrinhos de Gaiman para mais uma vistoria. Afinal, uma hora acabaria achando falhas, e falando “Ahá! Eu sabia que aquilo tudo era só uma patifaria para enganar adolescentes semiculturados que se acham a última rapadura da estante!”
O grande problema é que nunca achava falhas. Apenas linhas narrativas e referências cada vez mais sutis e geniais que me passavam despercebidos antes.
Se um dos fatores que fazem uma obra clássica é o fato de sempre encontrarmos algo novo a cada leitura subsequente, posso dizer sem medo que Gaiman já nasceu clássico.
E trabalhar com a obra desse cara foi algo que eu sempre quis fazer.
Mexer com ele – e convencer mais quatro pessoas que nunca haviam ouvido falar dele – é um trabalho extremamente prazeroso. Muito cansativo, porque cada aspecto desvendado revela outros aspectos que sempre haviam passado batido, que por sua vez revelam outros, num círculo de fios narrativos e temáticos que parece não ter fim; mas, mesmo assim, prazeroso. E isso se dá em grande parte ao fato das pessoas que não o conheciam, ao entrarem em contato com ele, te encontrarem pelos corredores da faculdade e te falarem “porra! O cara é genial!” e eu poder assentir com a cabeça, num gesto silencioso, enquanto conservo internamente um sorriso de orgulho que diz apenas “eu sei. Sempre soube.”
Porque ele é mesmo genial.
Não só já é considerado pela crítica como o maior escritor vivo - com uma carreira de pouco mais de 20 anos que já contém quase 150 prêmios literários e artísticas de todo o mundo – ainda é jovem e, diferentemente dos “grandes nomes” que vemos por aí, nem um pouco pretensioso. Mais do que o cara que vai em Cannes assistir os filmes que irão balançar ou não a crítica especializada, ele é o cara que vai na estréia do novo filme do Batman – simplesmente porque gosta do Batman. Mais do que o cara que vai nos grandes museus posar ao lado de Michelangelos e Da Vincis, é aquele que, num final de semana de bobeira, resolve juntar os amigos e produzir um álbum inteiro de rock em apenas 24h, incluindo aí composição e gravação de todas as músicas. Mais do que um cara que é tido cada vez mais como o grande escritor dos séculos XX e XXI, ele é o cara que tem orgulho de ter surgido de um gênero tão marginalizado quanto os quadrinhos. Mais do que o cara que se orgulha de ter viajado por praticamente todos os países do mundo e ter sua obra traduzida em praticamente todas as principais línguas, ele é o cara que fica feliz por não precisar acordar antes do meio-dia para exercer sua profissão. E que vive numa mansão igual à da Família Adams do seriado dos anos 60 – o que é sempre um motivo a mais pra se gostar dele.
Mais do que tudo isso, ele é um cara que nunca se importou em ser culto, ou de fugir da “indústria cultural”. Ele apenas gosta de inventar histórias, e contá-las; e é isso que vem fazendo durante muito tempo.
E é isso que faz dele alguém com que qualquer um, independente do gosto ou da pretensão artística, acabe se identificando com ele. Mais do que um personagem, ele é uma pessoa comum.
Ou pode ser tudo puxa-saquismo de minha parte. Vai saber. Escrevendo a essas horas da madrugada depois de um semana dormindo mal, não dá pra ter mais certeza de nada.
Apenas de que o cara é o melhor escritor que eu já conheci. E isso pra mim basta.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Virtual indivíduo na época do desamor


...te enviou uma mensagem

a barrinha azul piscante no canto direito indica mais uma chamada na madrugada; manhã; a vontade de ignorar

a falta de coragem pra isso

o oi seco de coração palpitante

a ansiedade de falar; a vontade crescente de mandar a merda

ponto final

colocar um ponto final na história

mas nunca gostou de pontos finais

ponto e vírgula;

;

ponto e vírgula sempre foi mais sua cara

a indecisão; incerteza; o não saber se é fim ou pausa

momento

ou eterno

uma risada

hauhauhauuahuauha

falsa;

um fato da vida

ok

silêncio

a foto no canto direito, bolinha verde ao lado; o necessitar falar

o não querer dar o braço a torcer;

feridas no ego não curam; aumentam

a cada palavra; dita ou não;

muitas não são; a maioria delas

mas não há ponto final
;

apenas

dia sim, dia não; tudo continua

se arrastando

sem coragem

para nada

masturbar para não chorar;

é o que há para a noite...


*

Uma hora ele tinha que sair de sua cripta.

Abrir as janelas, ver o mundo.

Falar com as pessoas.

Tomar uma cerveja. Acima de tudo, tomar uma cerveja. É uma das vantagens de se estar no meio de um monte de gente, a maior parte delas desconhecidos dos quais você não se importa nem um pouco; pode-se tomar cerveja sem parecer um alcoólatra.

E pessoas tinham aos montes.

E uma pessoa.

Ao longe, na surdina, observa. Bebe. Uma cerveja, duas cervejas, dez cervejas, onze cervejas, cervejas de perder a conta.

E observa.

Dança. Risos. Abraços. Poses para fotos.

Um riso perdido em sua direção. Pega para si. Não é dele. Sabe que não é. Mas o toma de qualquer jeito. Sem permissão; sem consentimento; sem nem mesmo saber que fazia aquilo. Sorria para ninguém o sorriso que gostava de se sentir dono. De longe. Sempre de longe.

A solidão nos torna cada vez mais solitários. Perde-se a habilidade do xaveco, da conquista. Mesmo do mais inocente bate-papo. A falta de contato humano faz desejar ardentemente qualquer tipo de contato; sem sucesso. Não se sabe mais fazer contato. A solidão que gera a necessidade de socializar que mostra a incapacidade de o fazer e o desejo de se isolar.

Um círculo vicioso que termina na garrafa de cerveja, na dose de conhaque, no copo de uísque, em qualquer coisa alcoólica que faça a cabeça começar a girar e induza ao sono tranquilo.

Os olhos que veem. A necessidade latente de ir embora para não mais ver. As pernas que andam sozinhas, a cabeça que de repente se encontra sentada na cama, escondida entre mãos suadas.

O sono que, uma hora, chega.

Ainda embalado no sorriso roubado. Na noite intranquila.

O mesmo erro; a mesma coisa de sempre. Tudo de novo.

Círculo viciado.

*

Em todo lugar, existem aquelas pessoas que choram e esperneiam por não encontrar seu príncipe encantado e sua princesa na torre, e se sentem as mais miseráveis no mundo por isso. Para desespero daqueles que se contentariam com a bruxa, a fera, a irmã má ou mesmo o sapo, e mesmo assim se veem fora da história.

sábado, 6 de outubro de 2012

A poesia morreu!


Tudo o que ouço é blablablá.

Olha, não queria dizer isso, mas como não me deixam opção, não tenho escolha. Que me desculpem Homero e Virgílio; me desculpe Camões de mares nunca dantes navegados. Me perdoe o eterno bardo Shakespeare, tenha ele existido ou não. Me perdoe Dante do sétimo círculo do inferno! Me perdoe também Lord Byron; ainda que ele nunca tenha perdoado ninguém, sempre há a primeira vez. Desculpa por tudo Baudelaire, mas sabe como é né? Me desculpa Rimbaud e Verlaine. Foi mal aí Ginsberg! Peço desculpas de todo o coração ao tio WW. E Frost, você também me perdoe. E você Fernando, seja uma boa pessoa e me perdoe. Me desculpe Bilac, Drummond, Bandeira. Me desculpa Manoel por jogar seu nome no barro. Vininha! Grande poeta das coisas pequenas, me desculpe. E Noel, Cartola, Chico, Gil, Morrison, Dylan, Lennon – todos vocês, e tantos outros, me perdoem!

Peço perdão porque, no que tenho a lhes dizer, não há benção.

Meus amigos, é com quase nenhum pesar que anuncio: a poesia morreu!

Sim, ela está morta, velada e sepultada. Não há mais nada a fazer.

Ela, que sobreviveu à Auschwitz, pereceu ante o todo-poderoso iPod. Ela, que se alimentou de nossas desgraças, perece ante as próprias.

Como sobreviver num mundo em que todos possuem um ego de poeta?

Bons tempos quando apenas poucos privilegiados tinham a coragem de expor seu sofrimento e tocar aqueles ao seu redor. Hoje todos sofrem em público – e ninguém realmente se importa.

Mas se importar por que né?

Como boas novelas mexicanas, os dramas da vida moderna são requentados – a menina que gosta do menino que não gosta dela; o menino que gosta da menina que não gosta dele. Parece ser essa a premissa principal de todos os roteiros – tão originais que se repetem sem nenhuma alteração. Vale a pena ver de novo? Não, mas exibimos do mesmo jeito.

Exibimos, e nos exibimos, e esperamos atenção. Olhem para mim! Olhem como eu sofro! Não consigo conter minhas lágrimas! Ahhhhhhh!!!!!!

Tédio.

Perdido num oceano de sentimentalismo barato, tudo o que sobra é tédio. Não há beleza, não há novidade, não há catarse. Apenas o desespero pós-moderno da dor de corno.

É meus amigos, escutem bem o que estou lhes falando. A poesia morreu!

Tudo o que resta são intermináveis refrões de bolero...

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Diário de um bêbado juvenil

* Por Aline Antunes

Eu sei, eu sei. Eu sei que nada que eu tomar vai acabar com isso. 
Parei, parei de tomar aquelas merdas de camomila, já que nada muda, deixo as merdas de melissa e todos os capins do mundo pra beber umas garrafas.
Minha rua é repleta de babacas crentes e caretas que me julgam todas as noites de cigarros e cervejas buscadas no posto. Reveso entre os preços mais baratos, ou umas especiais em noites mais quentes, ou noites mais tristes. 
Minha rua é repleta de bostas que dizem: Lá vai o vagabundo, parece um mendigo.
As piranhas da minha rua fazem alguns comentários que pouco me importam. Algumas ainda acham que eu pagaria alguma merreca por aqueles corpos gastos, há boatos de que me achariam intelectual, apesar de bêbado, barbudo e magricelo, bem magricelo.
Pouco importa os merdas da minha rua, as piranhas do prédio ao lado. Aos jovens doentes que só comem merda e se afundam. Posso ser também um deles, mas não disfarço meu sangue sujo com partidas de futebol. Não aguento mais cinco minutos de corrida, e sinto saudades dos cinco gols que dedique para uma menina envolta de cachecol na arquibancada fria daquele clube pobre.
Andei procurando cabelos brancos que justificassem essa casa suja, as latas de cerveja, as garrafas de tantas outras coisas. Nem dentes e bigodes de fumante eu tenho, sou um velho juvenil fodido, pobre e sem graça.
Não entendo mais as filas nas portas de clubes e repúblicas. Não entendo mais os perfumes no dia dos namorados, nem as caronas na volta da missa. Acredita que os namorados ainda se encontram para ver o o padre e comer um lanche? Eu não como nem as piranhas da minha rua, quem dirá um lanche após a missa.
Um jornal me fez uma infeliz ligação as dez da manhã. Os mandei a merda, larguei a música e a política, os mandei a merda e espero que tenham atendido meu pedido.
Nunca fui o tipo do cara que poupou as palavras, muito menos o cara que improvisou palavrões na frente dos pais, não me venha com meias merdas, eu te enfio o caralho e acabo com qualquer filho de papai que me atravesse.
Eu saio de novo, com frio, bermudas, moletom e chinelo. Acabo com meus cigarros e minhas bebidas, e ainda mato algum filha da puta da minha rua, e digo mais... Não como piranhas. 


* Aline é companheira de artistas, músicos, poetas e tantos outros bêbados inveterados, e estudante de jornalismo nas horas vagas. Sonha em um dia fazer sucesso suficiente para poder bancar suas próprias drogas, e pode ser encontrada no blog Mascando Flor, em http://mascandoflor.blogspot.com.br
Apesar dos comentários maldosos, ela jura que a crônica acima não foi inspirada no dono desse endereço, e nem que usou o "magricelo" apenas para despistar.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Parado nas Parada

 
“Ow, passa aqui em casa lá pelas vinte pras uma?”

“Passo! (e lavo também!)”

E foi assim, com duas frases e uma piada bem ruim, que eu e o Machado – vulgo João Pedro – combinamos nossa ida à Parada Gay (na verdade o nome do evento é 5a Parada da Diversidade de Bauru, mas esse nome é muito longo e....grosso....*suspiro*...) no dia seguinte. Minha primeira ida a uma Parada dessas – o que pode ser normal para um jovem hétero de 25 anos mas que, se considerar que esse mesmo jovem já está a cerca de sete pseudo-focado no estudo das artes, e a uns quatro passeando entre um curso e outro da área de Humanas em faculdades públicas, é um absurdo que ainda não tivesse ido em nenhuma, principalmente porque morei dois anos em Campinas. Mas dessa vez não iria me dar ao luxo de ficar em casa dormindo; o domingo estava reservado para a Parada e, mesmo que me desse uma baita preguiça de última hora, teria alguém para ficar tocando a campainha de casa e me fazer sair da cama.

E foi mais ou menos isso que aconteceu no dia seguinte. Depois de cerca de quatro dias seguidos de insônia, dormindo menos de 3 horas por noite, o sábado se mostrou um manancial de tranquilidade e sono pesado, que fez com que eu acordasse a pouco menos de dez minutos do horário combinado. Bem, quem precisa almoçar, não é mesmo? Então, utilizando da habilidade adquirida durante os anos de colocar a calça ao mesmo tempo que escovo os dentes, em menos de cinco minutos já estava pronto para mais um dia de (des)serviço.

Já passava das uma quando a campainha tocou.

“Ae Nóia, malz me atrasar, mas foi meio que proposital. Afinal, todas suas histórias começam com alguém se atrasando, eu não queria ser diferente.”

Um momento histórico na minha curta vida de jornalista folgado; mal comecei a escrever e já tenho um clichê formulado, carimbado, assinado, com firma reconhecida em cartório e aceito pela sociedade.

Mas não era hora de pensar nisso, mas sim de caminhar. Não que o lugar fosse muito longe, afinal a Praça da Paz, local onde ocorreria a concentração antes de seguir para o Parque Vitória Régia, era a cerca de dez minutos de casa a pé. Mas a ideia era chegar cedo, pra poder aproveitar ao máximo as bizarrices que apenas um evento desse tipo pode proporcionar.

“Cara, acredita que é a primeira vez que eu tô indo na Parada?”

“Eu também. Nem quero saber o que minha mãe vai falar disso. Ela acha que se eu for na Parada Gay eu vou acabar virando gay. Tipo, qual o problema? Eu fui na Marcha das Vadias!”

“Mas você é uma vadia.”

“Eu sei, mas minha mãe não precisa saber disso.”

Bem, depois dessa revelação, acho que eu posso excluir “mãe do Machado” da minha lista de possíveis leitores.

A primeira cena estranha do dia já acontece duas quadras antes do local, no quarteirão seguinte ao Ragazzo da Av. Nações Unidas. Parados na esquina, dois perfeitos “maninhos”, com camisa regata, calça dois números maiores, cueca aparecendo e gorrinho de lã, enquanto um sol de quase 30oC queimava qualquer um que se aventurasse a sair de casa naquela tarde de domingo. Um estava de cócoras, mexendo numa bolsa, enquanto o outro se mantinha em pé, parado, meio que tampando a visão de quem passava pela avenida, e olhando apreensivo de um lado para outro. Uma cena que já havia visto muitas vezes nas minhas saídas noturnas: apenas mais dois moleques achando que escrever mlk doida libera já 4:20 e um desenho de folha de maconha ou qualquer coisa do tipo os tornariam “rebeldes” e “másculos”; nada muito diferente de qualquer cidade por onde já passei. O meu espanto com aquela cena se dá mais pelo fato de que nunca vi fazerem algo do tipo num lugar tão movimentado e tão à vista em plena luz do dia. Aquilo sim era rebeldia! Mas então a cena logo se desdobra numa conclusão mais lógica (?), e o camarada que está abaixado tira da bolsa, ao invés de uma lata de spray, um espelho com um estojinho e começa a retocar a maquiagem. O domingo prometia...

Na Praça da Paz, o clima era de festa. Apesar de ainda vazio, dois trios elétricos já animavam as poucas pessoas que chegaram cedo às ruas. A Nações já estava com o trecho que a Parada percorreria interditado, e polícia e bombeiros já estavam de prontidão nos entornos para qualquer emergência. Depois de um volta rápida pelo local, fui fazer o que faço de melhor: achei um canto na sombra de um prédio, encostei no poste e ali fiquei, fazendo cara de mal e observando o movimento.

Aos poucos as pessoas iam chegando. De ônibus, vans, carro, moto, a pé e até mesmo a cavalo, a Praça foi ficando cada vez mais lotada de gente. Bauru, São Manuel, Agudos, Lençóis Paulista, Pirajuí, Botucatu, Rio Claro, Sorocaba, Ribeirão Preto...pessoas vindos de todos os cantos iam preenchendo as ruas, trazendo um colorido e animação nada característicos às sonolentas tardes de domingo bauruense; mas esse é um tipo de informação que parece não ser assim tão claro para todos; como para o rapaz loiro, no auge dos seus vinte anos, com um ar de perdido no rosto que dizia claramente que estava vindo pela primeira vez à cidade, e somente por causa da Parada, que me perguntou onde ficava a Praça da Paz. Educadamente, respondi que estávamos nela, mas fiquei me perguntando: que tipo de pessoa acha que, seja em qualquer cidade do interior paulista (ou talvez até mesmo na capital), ruas fechadas, trios elétricos decorados com bexigas coloridas simbolizando um arco-íris tocando música dançante no talo, pessoas sem camisa ou produzidas no melhor estilo “coadjuvante de Priscila – A Rainha do Deserto” dançando pela rua com latinhas de cerveja na mão e senhoras de meia-idade com camisetas de ONGs distribuindo camisinhas entre os presentes fazem parte da rotina de uma tarde de domingo? Ou realmente fazem, e é eu que preciso sair mais de casa?

Esse fluxo de pensamento é cortado por uma das senhorinhas de meia-idade com camiseta de ONG, que me cutuca e oferece um folheto explicativo sobre os perigos da AIDS, além de uma cartela com 4 camisinhas. Eu pego sem nem bem olhar pra cara da mulher, mais ou menos como sempre faço quando ando pela rua e me oferecem folhetos de dentistas, baladas, condomínios e pessoas que compram ouro. Já estava voltando para a minha posição estática de observação quando ela educadamente me pergunta “precisa de mais?”, ao que eu educadamente respondo (até mesmo esboçando um sorriso!) “não, obrigado”, esperando que ela sorria de volta e siga seu caminho. Mas qual não foi minha surpresa quando ela fechou a cara e soltou um “hmmm...”, cheio de descrença, antes de continuar seu trabalho. O que queria dizer aquele “hmmm...”? Será que ela me achou humilde demais, e duvidou que quatro camisinhas seriam o suficiente pra minha noite (que, ao acabar a noite e minha expectativa de zero ser atingida, bati oficialmente o recorde brasileiro de seca que até então pertencia ao sertão nordestino)? Prefiro acreditar que sim; seria o melhor elogio que recebi no ano.

A tarde se arrasta com o mau humor de velho ranzinza que não almoçou, enquanto a felicidade dos foliões de Agosto preenche as ruas cada vez mais cheias dos entornos da Praça. E logo 50 mil pessoas estavam lá, pulando, gritando, dançando. “Sua biscate! É só ver um bando de homem sarado que já vai correndo pra perto!”; 50 mil pessoas numa alegre manifestação política prontamente ignorada por boa parte dos presentes. E daí que o prefeito estava entregando uma cópia do processo de habilitação para Charles e Cauê, o primeiro casal de mesmo sexo a oficializar a união civil na cidade, criando mais um capítulo vitorioso na longa história de batalhas no país para que a igualdade de direitos para todos seja, realmente, para todos? E daí que a história dessa luta vem de longa data, desde 1969, quando, na cidade de Nova York, gays e lésbicas cansaram de serem espancados e presos por sua opção sexual e resolveram se juntar e mudar a situação, num movimento que ficou conhecido como a “Rebelião de Stonewall”? E daí? Afinal, não é isso o que realmente importa no evento, pelo menos não de acordo com as postagens que movimentam o grupo dele no Facebook. “Quem vai sair namorando da Parada bate aqui!”, “quem vai beijar muito na Parada é nóis”, “quem aqui vai sair da Parada casado?”, e tantas outras mensagens de tamanha ansiedade davam o tom da preparação para o evento na rede social. O fato é que, para muitos que estavam ali, a Parada não era diferente de uma noite de sexta na Labirinthus (prestigiada boate gay na cidade de Bauru), só que de graça e, por isso, bombando mais, tornando um evento de caráter político-revolucionário em apenas mais um de tantos carnavais fora de época, deixando claro o fato de que, mesmo entre as minorias, é apenas uma minoria que se importa, enquanto o resto reclama de perseguição mas não consegue deixar de lado seus anseios egoístas para que as coisas mudem; no fim, a única coisa que realmente diferencia as variadas minorias da imensa e única maioria é a matemática, os números violentamente reais dos muitos que reclamam de tudo e fazem ainda mais barulho quando alguma coisa finalmente muda. Poucos são aqueles que realmente se preocupam, que agem, que geram mudanças. Se sacrificam. E são, invariavelmente, esquecidos; o sentimento de mudança coletiva deposto pela realização do ego daqueles que ignoram que, até bem pouco tempo, nada daquela diversão poderia ser realizada sem que o resultado final fosse chumbo, paulada e cana.
Quantos daqueles 50 mil realmente sabem da importância de um evento como aquele, de como ele tem influência direta em suas vidas que vai além do fato de se ter ou não um namorado?Provavelmente bem poucos; uma meia-dúzia de gato pingado, no máximo. Gostaria de estar errado, mas sou cético demais pra acreditar nisso. Poucos realmente estão ali por um objetivo; o resto está ali apenas pelo circo, massa de manobra e grosso de gente que dá números expressivos ao evento.

Fato que, tristemente, parece ser o praxe em qualquer manifestação política brasileira.

Mas não parece haver espaço para lamentação em meio a tanta música, dança, sorrisos, gritos e pegação que tomam conta da avenida mais movimentada da cidade nos cerca de dois quilômetros do percurso a ser percorrido até o Parque Vitória Régia, onde uma noite de grandes shows encerrará o evento. Claro que, logicamente, não para quem está escrevendo, esse pseudo-jornalista casmurro e mal-humorado que odeio dança e pegação e, principalmente, grandes aglomerações de pessoas. Claramente estava ali por puros princípios profissionais, e por puros princípios profissionais iria acompanhar aquilo até o final. E assim fui até chegar no Parque Vitória Régia, onde a noite seria encerrada com um grande show da banda Teatro Mágico. E, realmente, foi um show mágico. Tão mágico que, só ao ouvir os primeiros acordes, eu magicamente me percebi na frente do portão de casa, ainda recuperando o fôlego enquanto tentava acertar a chave para destravá-lo e, o mais rápido possível, cair na cama.

E logo na cama estava, caído, lutando contra o sono e o cansaço e tentando pensar em como montaria o texto sobre o evento, esperando que meu estômago roncando se satisfizesse com a digestão de informações. Mas, aparentemente, aquele era um prato muito pesado, e nada me vinha à cabeça de como poderia resumir aquilo tudo. Nada além de uma menininha linda de uns dois anos de idade, de cabelo chanelzinho e vestidinho azul cheio de bichinhos, andando e olhando maravilhada, apontando para as pessoas na rua, enquanto a mãe a puxava apressada pela mão, dizendo “sim filha, tem balão, tá tudo lindo”. E fico pensando naquela garotinha, fascinada com toda aquela movimentação, todo aquele colorido, toda aquela novidade e, mesmo sem entender nada do que acontecia, com um sorriso no rosto e brilho no olhar de quem quer fazer parte de tudo aquilo.

Porque tava lindo. E tinha balão.

Mas também tinha muito mais por trás, uma beleza que costuma não penetrar através de nossas muralhas “protetoras” de preconceito, mas que foi percebida por uma menininha que mal havia saído das fraldas. E que me deixa sem saber se devo sentir orgulho; ou vergonha.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Quem ri

Já passava de meia-noite quando as filmagens começaram.

“Em seus lugares....Atenção....!” Ao lado da câmera o diretor se comunicava por gestos...três dedos em riste...dois dedos...somente o indicador....o polegar levantado. Começava a gravação.

“Boa noite! Iéié! Salci-fufu!!” Pulinhos e gracinhas e gestos idiotas e vozinhas irritantes e segue o show.

“O que você faz meu filho?”

“Eu mordo o cotovelo.”

“Você faaaazzzzz....OOOOOO QUEEEEEE?”

“Eu mordo o cotovelo.”

“CORTA! Foi ótimo garoto!”

Sem dizer palavra, ele vira a cara e acende o cigarro. Ainda me encontro parado ao seu lado, sem saber muito bem o que fazer, o diretor, câmeras e contra-regras correndo de um lado para outro. Olho embasbacado, sem saber o que fazer, o que dizer. Ele apenas vira para mim, solta a fumaça do cigarro na minha cara, dá as costas e vai para sua cadeira. Sem dizer palavra.

Um humorista. Sem nenhum humor.

Enquanto se afastava, o diretor do programa veio falar comigo. “Liga não garoto. Ele é assim mesmo” dizia enquanto balançava a cabeça em sinal de negação. Uma coisa era evidente no olhar de todos que estavam ali trabalhando: ninguém gostava do cara.

Já passava de meia-noite e eu ainda estava no motel.

Era num motel que eram feitas a gravação do quadro “Salci Fufu”. Não sabia em que motel estava, nem mesmo em que bairro era, ou até mesmo se havia algum ponto de referência nos arredores. Era um motel, era em São Paulo, e era tudo o que eu sabia.

As pessoas corriam de um lado pro outro, todas ocupadas, enquanto o “astro” continuava sentado em sua cadeira, fumando e gritando com algum pobre coitado que na correria acabava encostando nele. Sua fisionomia sempre séria, uma cara de poucos amigos que dizia “cai fora daqui e sai de perto de mim seu pedaço de merda” de um jeito bem direto. Sorrisos e gracinhas e gentilezas? Aparentemente, apenas o led vermelho das câmeras eram dignos de recebê-los.

“Esse cara é um idiota” diz um velho que estava atrás de mim. “Um verdadeiro babaca. Cigarro? Conhaque? Estou tentando parar de fumar, mas nesse clima é difícil não querer um cigarro.”

Estava frio, e eu também estava parando de fumar. Mas aceitei o conhaque.

“Esse cara é um babaca. Só porque fez um pouquinho de sucesso na TV já se acha melhor que todo mundo. Ele não vai olhar na sua cara se não tiver nenhuma câmera ligada. Primeira vez aqui?”

Digo que sim, enquanto matava a última dose do conhaque. Ele me conta que já era a terceira vez que participava do programa, que praticamente toda a equipe já o conhecia e o tratavam já como se fosse da casa, mas mesmo assim o cara só lhe dirigia palavra quando estavam gravando. Fora das câmeras, nem mesmo um perto de mão.

“Eu ainda venho porque é uma boa propaganda do meu número. A quantidade de shows sempre aumenta depois que apareço na TV.” Ele me mostra então uma serra Makita, daquelas de lâmina circular, usadas para cortar ripas e caibros em madeireiras. Passei o dedo; a lâmina era real. E afiada. “Eu ligo a serra e faço a lâmina parar de rodar usando apenas a língua” disse, orgulhoso. Havia ali também duas garotas e dois rapazes, todos na faixa dos 20 anos e aparência de modelo. Uma delas correu na direção do velho quando esse ia jogar a bituca do cigarro fora. “Espera!” Tomou a bituca das mãos dele, e começou a fumar. “Eu adoro bitucas de cigarro! E aquele restinho quente e amargo que fica nas latinhas de cerveja. Meus amigos falam que eu sou a pessoa ideal pra se chamar pra sair.” E, depois de duas belas tragadas em um toco de filtro praticamente sem tabaco, jogou o cigarro no chão e voltou para a roda da beleza. Não muito tempo depois o diretor foi até onde estavam e apontou para uma moça e um rapaz. “Você! Você! Pro carro. Gravamos em cinco minutos.” O apresentador se levantou e seguiu para a saída do motel, passando ao meu lado sem esboçar qualquer sinal de simpatia. Os dois que ficaram se aproximaram e vieram puxar papo. “Já faz alguns meses que tô nisso. Eles ligam pra agência, a gente vem e finge que tá saindo do motel pra darem o flagra no programa. Mas, cem conto pra entrar num carro e fazer cara de constrangida? Pra mim tá ótimo.”

Pergunto se o humorista não costuma flertar com as meninas que chamam pro programa. “Sim. Mas ele não gosta de pagar pelo serviço. É um babaca.”

De onde estávamos, era possível escutar os barulhos da gravação. As risadas, os gritos, as piadas...toda a falsa alegria que é reservada apenas para os milhões de desconhecidos sentados em seus sofás, alheios a tudo aquilo que acontece por detrás das câmeras. Alheios ao fato de que a pessoa que os faz rir é um babaca, se não de nascença ao menos por maioria de votos.

A noite continua. O show acaba. O diretor traz o documento de direitos de imagem parar ser assinado, e me aponta o carro e o motorista que irá me levar para casa. Enquanto atravesso o estacionamento do motel, quase sou atropelado por um sedan que saía a toda. Era ele. Grito; mando o filho da puta à merda com gosto. As pessoas em volta esboçam um sorriso de cumplicidade; estão satisfeitas por alguém finalmente ter dito aquilo em voz alta.

O motorista abre a porta do carro. “Liga não, ele é assim mesmo. Um tremendo babaca.” Vamos conversando durante todo o caminho, e ele vai me contando detalhes de sua vida; detalhes tão comuns e banais que na manhã seguinte já não me lembrava quais eram. Mas naquele momento eram tão interessantes quanto qualquer outro assunto que pudesse quebrar o silêncio sempre constrangedor de um carro desconhecido.

Em certo momento, perguntei a ele se assistia sempre ao programa. “Não. Não gosto. Acho muito apelativo.”

Talvez o cara lá estivesse certo. Talvez seja esse o segredo.

Estar alheio.

Ninguém gosta daquilo que conhece.

E, pelo menos a impressão que ficou daquele dia, é que ele não faz nenhuma questão de conhecer ninguém. Um verdadeiro babaca filho da puta. Mas com muito mais reconhecimento do que todas as pessoas legais que o rodeavam.

Resta só saber se vale a pena...

sábado, 1 de setembro de 2012

Crônica de Sábado

O que fazer numa noite de sábado?

Aposto que não sou o único que se pergunta isso. Não digo hoje, ou todos os sábados desde que foram criados, mas pelo menos uma vez ou outra todo mundo já se fez essa pergunta. O que fazer numa noite de sábado?

Não é como se tivesse muitas opções, de qualquer modo. Afinal, não vivo em nenhuma grande metrópole, com 15 opções de cinema, 4 teatros e 50 casas de show de diferentes estilos e público oferecendo diversas opções, seja com bandas ao vivo ou discotecagem, para todos os gostos musicais. Não, não moro numa metrópole dessas.

Estou em Bauru, onde a base da diversidade noturna se dá em pão, rosbife, queijo, picles e tomate.

E, lógico, festas em república.

Essa talvez seja uma das poucas vantagens de se morar numa cidade universitária no interior. Você não tem bons cinemas com uma grande variedade de filmes além dos mais novos enlatados de Hollywood, ou uma nova encenação teatral a cada semana (isso quando a cidade em questão ainda possui um teatro), ou mesmo bons shows de bandas que oferecem uma gama maior de diversidade musical além dos hits da rádio e as mesmas bandas cover de sempre. Não, muito pelo contrário. Apesar do errôneo senso comum de achar que o estudante universitário está atrás de novos horizontes, novas tendências culturais, novas fronteiras para seu conhecimento. A bem da verdade, umaa boa parte deles está satisfeito em assistir o último filme do Stallone ou ver repetidas vezes a mesma banda cover de Metallica em sua casa de shows preferida. Mas, se tem uma coisa que é comum em qualquer cidade com universitários, é a paixão por festas.

E elas existem aos borbotões.

Praticamente todo dia pode-se encontrar uma festa nova, o que é algo ótimo pra quem quer se divertir em cidades que, normalmente, não possuem quase nenhuma opção de lazer. E uma boa alternativa para aqueles com pouca grana. Porque, se tem uma coisa que é fato nas festas universitárias, é que elas costumam oferecer o mesmo tipo de música e bebida que se costuma encontrar em qualquer balada, com a vantagem de ser mais barato. Tudo bem que a vodka é de qualidade duvidosa e você acaba esbarrando sempre nas mesmas pessoas que você encontra todos os dias, mas, hey! Reclamar do que por dez conto o open bar?
Com pouco mais de 10 reais no bolso, o jeito é procurar algumas dessas festas. Eltricachaça....não, essa foi quinta....Godfather, festa da máfia, parece legal...não, foi sexta....o que que tem pra sábado....? Ahá! Festa na Risca-Faca. Bregisca...? Festa brega...? Falcão, Magal e Biafra...? Hmmm....é, acho que essa noite de sábado merece a liberação do brega interior.

Por favor, gostaria de uma pizza marguerita e uma Coca dois litros.”

Mais alguma coisa?”

Não, só isso.”

Porque não existe nada mais brega do que ficar em casa de cueca, comendo pizza, tomando Coca e vendo filme do Van Damme.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O pó da estrada

Home I'll never be, home I'll never be...

Sobem as letras brancas num fundo preto. Créditos. Fim do filme.

Uma história sobre isso, POR FAVOR!

Um sorriso amarelo, sem graça. Um aceno positivo de cabeça. OK. Falar o que né?

Reunião em frente à sala. Todos se aglomeram em volta pra pegar detalhes, comentários. Pérolas de sabedoria. Aos porcos? Do porco. “Sério que os personagens são pessoas reais?”; “Sério que um daqueles drogados virou reitor de universidade?”; “Sério que aquela bicha é um dos maiores poetas da história dos EUA?”; “Nossa, como você sabe tudo isso?”

Vou a pé, até mais.

Uma bela caminhada. Quase quatro quilômetros. Tempo o suficiente pra retomar o controle. Espero.

O filme trazia lembranças. Lembranças de um tempo...que eu ainda me interessava. Lembranças de uma época em que era muito simples sair bêbado a 120km/h pelas avenidas da cidade, costurando o trânsito , fechando ônibus e entrar derrapando nas esquinas, o som no talo quase estourando os tímpanos dos ocupantes com as notas de algum clássico do Iron Maiden; tempo de sentar nas calçadas às 3 da madrugada, abrir uma garrafa de uísque barato e ficar até o nascer do sol discutindo poesia. Tempo de baseados, carreiras e o vômito feliz da ressaca no dia seguinte.

Duras lembranças.

Olho para minha mão: caminhava com dois dedos, indicador e médio, em riste, como que segurando um cigarro.

Um cigarro agora ia bem.

Mas essa não era mais a vida. Sem maços de cigarro no bolso. Sem garrafas de bebida na mochila. Sem papelotes no tênis. Era uma nova vida, banal e patética, de geladeiras cheias de água e frango, e uma eventual pizza com Coca-Cola nos sábados. Tudo muito clichê.

E não mais o clichê beatnik.

Lembro também da sala durante o filme: as conversinhas paralelas, os comentários moralizantes, as risadas fora de hora.

LEVEM SUA MORAL PARA FORA DAQUI!

O grito que se perde em pensamentos antes que possa dominar a garganta.

Lembro de como estou tenso a cada cena, enquanto todos fazem piadas. De como ainda estou tenso; de como não tenho um cigarro.

E percebo de como essas pessoas nunca vão entender a tristeza daquela história; afinal, nenhuma delas é aquele raro indivíduo que já nasceu perdido. Elas nunca saberão o que é não se sentir em casa, em lugar nenhum. O que é ver toda sua certeza à vida se desmanchar defronte aos olhos. O que é não conseguir encontrar a felicidade, a salvação, um motivo de existência, nem mesmo nas drogas.

Nunca saberão de como, apesar de todo o sexo, risos e loucuras, aquelas pessoas são miseráveis. Aquela história, a mais triste tragédia de nossos tempos.

E as invejo por isso.

Mas, mesmo assim, ainda queria um cigarro.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Domingo

Domingo. Dia de sol, de cerveja, de juntar a galera pra fazer um churrasco e curtir um sambinha.
Não para um jornalista, essa criatura estranha que não faz a mínima ideia do significado da palavra “folga”. Assim como desconhece a expressão “acordar cedo”.
O despertador toca às dez. Desligo ele às onze. Levanto da cama apenas meio-dia. Tenho que encontrar dali uma hora outro colega jornalista, o Salgado. Matéria no domingo. Ninguém merece.
Chego dez minutos atrasado. Ninguém. Fico olhando o celular a cada dez segundos para checar uma impossível mensagem, já que ele não tem meu número. Para duas pessoas que estudam comunicação, é incrível como a nossa é falha.
Ele finalmente chega, praticamente no horário do ônibus. A primeira coisa que diz ao me cumprimentar é “cara, como que o Thompson aguentava?” Sei lá. O estranho é que não estou nem um pouco surpreso. Afinal, somos jornalistas, acho. Mal nos cumprimentamos e corremos para o ponto, o ônibus já descendo a avenida. Entramos e começamos a revirar os bolsos: dez centavos, cinco centavos, cinquenta centavos...esvazio a carteira, mais dez centavos perdido. Reviramos a bolsa e achamos mais algumas moedas. Fazer vaquinha pra pagar buzão, isso é jornalismo!
Falo ao motorista que quero descer na hípica. Um senhor fala que vai descer lá também. O acompanhamos. Chegamos no local quase uma hora antes do combinado. Precisamos procurar pelo Pedro, responsável pelo treino do time de rugby. Uma volta pelo lugar: feira de agronegócio, exposição de orquídeas, cocô de cavalo...mas nada parecido com um treino de rugby.
Ainda era cedo, fomos almoçar. Quinzão no “coma à vontade”. Comemos. Repetimos. Repetimos de novo. Repetimos ainda mais um vez. A dona do local começou a olhar torta pra gente. Repetimos uma última vez e fomos embora. Não que a comida estivesse particularmente deliciosa, mas aquela era a primeira vez na semana em que ambos se deparavam com um bom almoço: arroz, feijão, bisteca, couve...comida DE VERDADE! Não aquele miojo feito às pressas apenas para ter algo pra forrar o estômago, ou aquela coxinha que é devorada sem nem sentir o gosto direito enquanto se termina de digitar uma matéria que já está com o deadline vencido. Isso é jornalismo!
Nosso contato tinha dito que o treino começava às três. Mais uma volta pelo local. Nada. Dez minutos. Nada. Vinte minutos. Nada. Meia hora. Nada. Quarenta minutos e desistimos , já pensando em outra matéria para ser feita até o dia seguinte. Na rua nos deparamos com uma placa que indica “centro hípico” na direção oposta de onde estamos. Fomos até o tal local. Sem movimento. Ao longe, vemos uma garota bonita se exercitando...não deve ser o treino de rugby...ela começa a levantar um pneu de caminhão...só pode ser o treino de rugby.
O resto não interessa. Falamos com as pessoas, fizemos perguntas, ouvimos respostas. elas nos agradeceram por fazermos um trabalho que preferiríamos não ter feito. A mesma coisa de sempre. Não vale entrar em detalhes sobre isso.
Porque, às vezes, a jornada é mais interessante do que o fim dela. E isso é jornalismo.

domingo, 26 de agosto de 2012

E quando se for... Vai fazer falta pra você?

Por Diego Gomes*


Copos cheios e motivos quase vazios; Uma festa na terça e outra na quinta. Ir varado bêbado para a aula de sábado, ainda com uma tatuagem no pescoço meio borrada, com os olhos vermelhos quase fechando, e com o copo cambaleando ainda querendo mais. Dormir o dia todo e acordar com um amigo te ligando para ir beber mais. O álcool com toda certeza constrói um grande universitário. Quem nunca apresentou bêbado um seminário ainda desconhece o significado real da palavra “superação”.
Um chinelo remendado, uma camiseta amassada e furada, uma calça jeans suja e rerreutilizada; As palavras “moda” e “universitário” não se encaixam na mesma frase. Ah, como é bom não se preocupar com a aparência. Em um mundo onde você é o que você tem, ou o que pelo menos parece ter, poder não se preocupar com a sua aparência é uma sensação maravilhosa. Ninguém te julga, ninguém gosta mais ou menos de você por isso, ninguém nem ao menos nota que você esta usando a mesma camiseta há duas semanas seguidas. É, disso eu vou sentir saudade. Mas saudade mesmo eu vou sentir dos “não amigos” que fiz. Dos amigos que fiz não vou precisar sentir saudade, pois cada um deles eu ainda quero em minha vida quando tudo isso acabar.
Beijos com sabor de chiclete, com sabor de cigarro, e com sabor de cerveja; Disso também vou sentir falta. Tantas festas, tantas luzes, tantas bocas... Beijos ardentes, beijos molhados, beijos amargos, beijos sem paixão! Beijos sem culpa, sem pudor, e sem amor... É, disso eu também vou sentir falta.
As paixões que tive, as paixões que vivi, e também aquelas que não consegui; Essas também vão me fazer falta quando eu estiver sentado na mesa da redação e estiver contando ao vizinho sobre minha vida. Na faculdade muitas mulheres passaram e ainda passarão por meu coração. Quero me lembrar de todas elas, para quando eu for velho poder olhar para traz e dizer: - Eu amei! Ainda que sejam vadios amores de faculdade, ainda que sejam amores carnais e quase sem sentimentos... Mas eu amei.
E o que você vai fazer quando estiver velho e rabugento, e a saudade apertar? Lembrar da falta que faz os anos de faculdade com certeza.
É... Acho que vai fazer falta quando se for.



*Diego Gomes é estudante de jornalismo na UNESP-Bauru e, assim como tantos outros, também tem problemas com vidas cheias e copos vazios.

sábado, 25 de agosto de 2012

A “revolução” dos biXos


Vivemos num mundo de instituições. Não só instituições físicas, mas espirituais, ideais, morais. Mundo de valores institucionais em constante mudança; bancos tomam o lugar inabalável do casamento, e recebem ajuda de todos os deuses das cifras públicas estatais para que o “até que a morte os separe” não venha acontecer nessa vida; a instituição de família já não é tão importante quanto a de capital familiar; pessoas que já não sabem mais o que fazer para instituir lares, que se tornam cada vez mais parecidos com prisões, mantendo “cidadãos de bem” encurralados em suas próprias celas, amedrontados cada vez mais com a vida que continua a seguir do lado de fora; a instituição de intuições baseadas em estatísticas vomitadas diariamente por jornais que querem apenas nos mostrar a “verdade” enxergada através das verdinhas.
Entre tantas falidas e em processo de decomposição, temos também a instituição intelectual, que assume variadas formas; o “cala a boca, senta e desenha” do jardim de infância, onde aprendemos que todo o padrão de arte se concentra na busca de novos Picassos e Dalís, que são carinhosamente cedidos ao lixo ao término do período; o “fica quieto e estude” que se é ouvido durante nove longos anos para que podemos finalmente chegar na fase final do “fica quieto que isso cai no vestibular”. Ah, o vestibular! Fase final da nossa instituição intelectual, o casebre dourado do pensamento, o formador definitivo do profissional sem-graça! O suprassumo da ignorância fundamentada! O lugar em que, finalmente, depois de tantos anos, podemos travestir nossos egos com uma manta de papel “diploma”, que nos ensina que a idiotice pode ser totalmente aniquilada com uma simples quinquilharia de parede. A instituição máxima da intelectualidade alheia!
E ainda dentro desta existem várias instituições internas; a mais socialmente importante também a mais intelectualmente desprezível – ou vice-versa. A instituição das festas. Apenas quem vive no ambiente universitário sabe o quanto as festas são importantes; deve-se frequentá-las, mesmo que não se goste de álcool, de música ruim, ou de pessoas, já que são esses três elementos que podem ser encontrados em profusão em qualquer uma delas. Não importa o tema: “100 anos de Jamaica”, “Mamãe Quero Ser Gay”, “1001 Noites na Bahia”; depois de certas horas e certo grau alcoólico, tudo vira um baile funk de classe média, num “libera geral” em que as pessoas dançam as mesmas músicas, “dão os mesmos bafos”, e contam as mesmas histórias “vergonhosas” no dia seguinte. Toda semana. A mesma coisa. E você tem que ir. Mesmo que não goste; afinal, quem não vai em festa é “esnobe”, “antissocial”, “não gosta dos colegas de curso”; e se eu for todas essas coisas mesmo? É contra a lei por acaso?
E é. Contra a lei da convivência social na universidade. Não vá em festas e você começa a ser ignorado, pessoas passam ao seu lado do corredor e fingem que não te conhecem. Lógico que esse problema não existe se você for uma garota de rosto bonito, peitos grandes e/ou bumbum empinado; estou falando de pessoas que sabem o que é rejeição social. E se você não possui nenhum dos atributos necessários para ser aceito socialmente, como um bom corpo, bom carro ou boa carteira, o sacrifício de ser arroz-de-festa é algo que pode salvar sua vida no campus.
E, mesmo para quem não vai em todas, algumas são “fundamentais” (caso se pretenda ser considerado uma pessoa existente após quatro anos). Uma dessas é o “Jornalcoólico” - a festa de “libertação” dos “bichos” de jornalismo noturno da Unesp de Bauru. Uma importância social tão grande que faz com que, mesmo quem nunca tenha ido em nenhuma festa antes, fique uma hora sentado na rua esperando para que se abram os portões da casa onde tudo irá rolar. Casa que possui toda a área do quintal de terra; festa que acontece após três dias de chuva incessante. Não consigo decidir se é muita vontade de encher a cara, ou muito medo de ser excluído socialmente, que faz alguém ir pra uma festa dessas sabendo que, invariavelmente, sairá cheio de barro e cheirando misto de álcool, vômito e maconha. E ainda chegar uma hora antes de abrir os portões! De qualquer jeito, aqui estamos, eu e mais umas vinte pessoas, todas encostadas no portão e torcendo para que a chuva, que parece ter dado trégua, não torne a cair durante a madrugada.
O que se vê é um tipo de “esquenta” que fecha a calçada; pessoas fumando e bebendo e acenando e gritando para os carros e ônibus que passam pela rua. Piadas sem graça de cunho sexual sendo contadas; “causos” de festas anteriores sendo relembrados; vez ou outra alguém chutando o portão e gritando para abrir logo, e sendo prontamente ignorado pelos ocupantes da casa. Até que, com quase uma hora de atraso (o que, considerando-se a prática, dá pra se dizer que começou pontualmente), alguém aparece à porta e fala “entra só os bichos”. Um pede pra namorada entrar junto, outro o amigo. Logo todo mundo está dentro da casa, bicho, namorado, agregado ou apenas curioso. Somos então colocados em fila indiana para receber um carimbo na testa. Porcos. Gado. E rindo de tudo. Alguém grita “junta os bichos pra foto”, enquanto pessoas passam derrubando pinga goela abaixo dos fotografados. Pedra 90. 51 é luxo. Ninguém é obrigado a beber. Ninguém recusa. Cara, você sabe desde quando existe essa festa? “Sei lá. Bebe aí.” Bebe aí. Essa é a resposta pra tudo. Ninguém parece ligar pra nada. Pra que saber quando foi a primeira festa? Quem a criou? Quais os rumos que ela vai tomar? Se na manhã seguinte metade dos presentes terá prova, ou terminar de escrever um trabalho para entregar aquela noite, ou uma reportagem que já tá com o deadline vencido. “Bebe aí”. A resposta para todos os problemas da vida universitária.
E o pior é que estão certos. Desce a cachaça! Cadê a cerveja?
Mas a cerveja só seria liberada após o “batismo”. E é para isso que todo o gado é conduzido para o curral interno. E, um a um, cada cabeça é chamada para se prostrar à frente da multidão e receber sua “vacina”; duas seringas de vodka barata e groselha estragada que descem quase como gasolina batizada com mijo. Mas todos bebem, sem fazer cara feia. É a tradição. A tradição do batismo. A instituição da festa. Não deve haver quebra de decoro; é antiético. Antitético. Antiestético. O decoro é anestésico, anestesiante, anestático. Uma “porradinha” ainda espera na saída. E desce decoro!
Liberam a cerveja e os drinks; a música toca; a festa começa. Uma cerveja....duas cervejas...sete cervejas...não sei se é a idade avançada ou o fígado já detonado por antibióticos desde cedo, mas é estranho se sentir começando enquanto as pessoas já estão chegando lá. Chegando lá....não faz nem duas horas de festa e as pessoas já passaram de lá. Você está num canto bebendo sua cerveja tranquilamente e alguém passa cambaleante e encosta no seu braço, quase derrubando sua bebida, e diz gritando e com um sorriso enorme no rosto como acha você uma pessoa legal. E tropeça nas próprias pernas ao dizer isso. E você, como o cavalheiro que é, a segura antes que caia no chão e fala que também gosta bastante dela; a mesma pessoa que, durante as últimas....sei lá, seis ou sete semanas....passava por você pelos corredores e não dizia nem bom dia. Mas se a bebedeira é uma religião, na bebida somos todos irmãos, e amamos o próximo, e nos amamos, e amamos o mundo, e o amor é tão infinito quanto os copos cheios do open bar. E então ela se vai, se apoiando nas rodas de conversa enquanto tropeça nas próprias pernas. E outra te abraça, grita em seu ouvido que você é lindo, e então te dá as costas para, nem dois passos depois, cair de cara no chão, vomitar e levantar como se nada tivesse acontecido. E todos riem. E, ainda com um filete de bile, restos de miojo Turma da Mônica sabor tomate, Pedra 90 e Dolly, se agarra e começa trocar beijos calientes com o amigo gay, duas longas cobras de carne brigando pelo espaço de duas bocas que se faz uma, sem preocupar-se com aquele outro pedaço de carne, lembrança do almoço, que tenta encontrar seu espaço para fora daquela batalha. Olhar para a frente é olhar para o futuro; pessoas compromissadas dando fortes amassos descompromissados com quem quer que chegasse muito perto, que logo estariam escrevendo sobre a falta de ética na profissão; rapazes que saem gritando e xingando e chutando e mostrando toda sua raiva após levarem um fora, e que dali alguns anos estarão escrevendo belíssimos textos exigindo o decoro de parlamentares; garotas que sobem em cima dos freezers e das bancadas usadas como bar e fazem danças provocantes dignas de strippers, enquanto se esfregam nos rapazes que estão em volta curtindo o show, e que depois participarão de passeatas e escreverão editoriais e reportagens cheias de ardor e paixão exigindo que se pare de pensar na mulher como objeto sexual; FILHA DA PUTA!!!!;LINDOS!!!!; cara, te considero pra caramba! Pra caramba mesmo! Você sabe que se precisar....tamo aí....é....tá aqui no peito!; vômitos e gemidos de prazer; a inigualável sinfonia de bêbados conhecidos e alcoólatras anônimos. O futuro do jornalismo do Brasil! E que, muito provavelmente, entrarão no mercado de trabalho, formarão sua família e criarão seus filhos ignorando todas essas experiências e pintando-se como alunos e pessoas exemplares, paladinos da moral e dons bons costumes. Tudo muito errado!
Mas não preciso apenas olhar para frente; posso também olhar pra baixo. Olhar pra baixo é me desvencilhar do mar da hipocrisia futurística e dar conta do copo vazio em minhas mãos. E perceber uma belezinha sentada no chão, derrubada pelo álcool. Nuggets! “Quero ir embora”; meu passaporte para fora. Chamo o ruivo e carregamos a menina para fora da festa; ombro a ombro, tentando andar em linha reta e esconder o nível alcoólico em que ambos estavam. Uma pequena caminhada de 2km, mais cansativa pelo bêbado chato que nos viu saindo da festa e que resolveu nos seguir sem parar de falar um minuto sequer no nosso ouvido do que propriamente pelo peso que a gente estava carregando nos ombros, e chegamos na casa da menina. A deixo na cama dela, sem os sapatos e debaixo do cobertor, enquanto peço pro ruivo segurar o bêbado do lado de fora da casa. Dou um pequeno susto na colega de quarto dela, mas logo ela levanta e me ajuda na tarefa; afinal, pra quem mora em república ver um bêbado invadindo o quarto no meio da madrugada com alguém ainda mais bêbado nos braços já não é muita novidade.
Serviço terminado, faltava descobrir o que fazer com o camarada que havia nos seguido. Comer algo parecia ser uma boa ideia. Deus seja louvado pelos fast-foods 24h! Comprei comida suficiente para três pessoas. Sentamos no ponto de ônibus e começamos a comer...ou pelo menos alguns de nós...porque nosso amigo mala simplesmente vomitou e desmaiou apenas com o cheiro da comida! O ruivo me olhou com cara de preocupação, faço sinal pra ele nem ligar, e continuamos comendo. E assim ficamos durante uns bons minutos, comendo tranquilamente e discutindo sobre assuntos cotidianos enquanto, ali do lado, estava um colega de curso, caído desacordado em cima do próprio vômito. E lá ele ficaria, se já não estivesse sóbrio o bastante para voltar a ouvir minha consciência e ficar com pena do camarada. Então mais uma vez pedi ajuda do ruivo, e nos forçamos a carregá-lo até a minha casa. Depois de mais um pequeno esforço para subir as escadas, jogamos o saco-de-batatas (ou seria ainda uma pessoa?) no colchão reserva que tenho em meu quarto e damos a noite por encerrada; o ruivo vai embora, eu vou pro chuveiro.
Fico quase meia-hora embaixo da água corrente, deixando-a escorrer e purificar corpo e mente daquela vida noturna. Mas ainda consigo sentir o cheiro de álcool e vômito que impregna meu quarto, e os resmungos de alguém que ainda que quase em coma alcoólico consegue reclamar do por que demoramos tanto para jogá-lo num colchão. Não importa o quanto eu tente lavar minhas mãos de toda aquele sujeira; o meio está impregnado com aquilo. Não importa que eu esteja limpo e imaculado; o odor da corrupção e hipocrisia me seguirá onde quer que eu esteja. O que resta fazer é ignorar, enfiar a cabeça no travesseiro e tentar dormir. Ainda que em meio à merda.